sábado, 15 de março de 2008

O Terrível


Em março de 1475, na pequena cidade de Caprese - entre Florença e Arezzo - quando o prefeito, Ludovico Buonarotti Simone, viu nascer seu segundo filho quis dar-lhe o nome de um anjo: Michelangelo.
O menino orgulhava-se de ter algumas gotas de sangue nobre; todavia recentes pesquisas nobiliárquicas provaram que ele estava enganado. Dizem que Michelangelo era orgulhoso e extremamente sensível, além de irritante e facilmente irritável. Recebeu instrução em Florença, mas não aprendeu latim e jamais se entusiasmou com a Grécia clássica; era severo, ascético, hebraico, mais protestante do que católico - embora tenha sido um dos responsáveis pelo esplendor do Vaticano. Preferia o desenho à escrita, que segundo ele é uma corruptela do desenho. Contudo, além de artista plástico, também era bom poeta.
Ainda na adolescência foi convidado a freqüentar e decorar o jardim dos Médices, onde já vivia uma admirável corte de intelectuais e artistas. Mas aquele círculo refinado havia perdido a ética cristã, bem como o credo cristão, por isso, depois de conhecer tal arremedo de jardim de Epicuro, Michelangelo não quis se demorar muito – preferia o misticismo do jardim do Getsêmani.
Naqueles anos, o fanático monge Savanarola pregava seu implacável evangelho da reforma puritana, de observância estrita. Michelangelo muitas vezes ia ouvi-lo e jamais o esqueceu. Quando Savanarola morreu, algo do seu espírito pairou sobre o jovem artista melancólico – um desprezo pela decadência das cidades italianas, uma feroz mágoa em relação ao amor erótico, um sombrio desejo de destruição. Talvez por isso sua pintura do “Juízo Final” seja tão estarrecedora. Mas sabe-se que ele amou, e muito, suas poesias dizem isto. Só não dizem se foi amado. Michelangelo jamais soube lidar com sua sexualidade, a índole austera, a aparência pouco atraente e o medo da rejeição impediram que revelassem seus desejos. Portanto, teve uma carreira erótica bastante michuruca e viveu praticamente solitário. Não obstante, sublimou o desejo na arte, e todas as suas pinturas e esculturas traem sua inconfessável obsessão pelo corpo masculino: até as madonas de Michelangelo são musculosas!
Aos 33 anos, já rico e renomado, Michelangelo foi contratado pelo Papa Júlio II para pintar o teto da Capela Sistina. A princípio ele rejeitou, dizendo que era escultor e não pintor, e que seu colega Rafael Sanzio era mais qualificado para essa tarefa. Julio insistiu e lhe adiantou um pagamento de 3 mil ducados. Michelangelo cedeu e, em maio de 1508, deu início à labuta de quatro anos e meio da pintura suprema do Renascimento.
Imagine-se o velho Papa Julio subindo aqueles frágeis andaimes ajudado pelo artista e perguntando, impaciente: “Quando ficará pronta?”... A resposta, segundo relato do biógrafo e crítico Vasari, foi uma lição de integridade: “Quando eu tiver concluído tudo, creio que a arte ficará satisfeita”. Quando Michelangelo desceu pela última vez do andaime, estava exausto, emagrecido, doente e prematuramente velho. Tinha apenas 37 anos mas ainda viveria outros 51. Julio morreu quatro meses depois, em 21 de fevereiro de 1513.
Michelangelo lamentou a morte do grande Papa e se perguntava se o cristianismo ainda teria pela grande arte uma sensibilidade e veneração tão íntima.
À época, falavam do gênio de Michelangelo como “terribilitá”, uma palavra que, é claro, significa não tanto ser terrível quanto ser espantoso. E, de fato, nunca houve artista mais espantoso que Michelangelo – na amplitude de sua imaginação e na percepção do sentido, o sentido espiritual da beleza. Para ele a beleza era divina, venerável, um dos meios pelos quais Deus comunica-se à humanidade. Vasari diz que Lutero, numa carta, discordou dessa visão confessando a Michelangelo sua iconoclastia. Foi o fim da amizade e da admiração mútua que havia entre ambos. E só por causa disso Michelangelo não se tornou protestante. Para ele a arte jamais podia ser subestimada ou depreciada como uma superstição idólatra. Tal idéia, segundo Michelangelo, era em si idólatra e blasfema.

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