quarta-feira, 23 de abril de 2008

O pai do conto moderno


Anton Tchekov é, na minha opinião, o único escritor russo que não era histérico. Quem já teve o imenso prazer de ler qualquer um dos seus textos, sabe que neles não encontrará a titânica força épica de Tolstoi, nem o misticismo furioso de Soloviev, e tampouco as tempestades morais que assolam os romances de Dostoievski. Tchekov é sereno. Diria que é quase um santo - um dos poucos santos da literatura, como Samuel Beckett e Walt Withiman - embora possa ser considerado o menos espiritual e o mais humano dos gênios literários. Maxim Gorky, em suas Memórias, sobre o amigo Tchekov, afirmou que, na presença do grande dramaturgo e contista, “todos sentiam um desejo inconsciente de serem menos dissimulados, mais verdadeiros, mais eles mesmos”. Não duvido, nos contos e mesmo nas peças, podemos perceber que a bondade de Tchekov sempre mitiga a ironia. Mas isso não diz tudo. Tolstoi, que era um juiz implacável de seus colegas, foi sempre apaixonado por Tchekov, quer como escritor quer como pessoa, e considerava a grandeza humana do autor superior àquela apenas vislumbrada em sua obra. A generosidade de Tchekov estava relacionada ao seu respeito pela simplicidade do ser humano. Dostoievski, que, assim como Tolstoi, admirava Tchekov, enfatizava sua implacabilidade com qualquer ato vulgar ou mesquinho. No mais, Tchekov era uma fonte de benignidade com todas as pessoas.
Hoje porém a glória sempre presente do dramaturgo Tchekov não sobreviverá, talvez, à influência bem mais ampla e mais profunda do contista Tchekov. Os contemporâneos do escritor o liam como uma espécie de Maupassant russo. Mal percebiam eles que Tchekov não era um duo do extraordinário Maupassant, mas sim uma extraordinária alternativa aos leitores de contos acostumados a Maupassant. Se o francês passou a posteridade como o mais clássico dos contistas, Tchekov despontou como o grande inovador, o pai do conto moderno. Sua originalidade consiste em não compor histórias com começo, meio e fim (o que contraria todo o postulado acerca da composição do filósofo Aristóteles na “Arte Poética”). Seus contos não trazem grandes acontecimentos, sequer apresentam enredos: tudo isso é substituído por uma visão instantânea, uma impressão por assim dizer impressionista, que já é, em miniatura, uma visão completa da vida. Assim entendeu o público, assim entenderam Katherine Mansfield, James Joyce, Virginia Woolf, Clarice Lispector, Fraçois Mauriac, Julien Green, Lúcio Cardoso, et caterva. E daí começou a história do conto moderno, do conto sem enredo, fragmentário, impressionista. Mas a filiação é, apesar de tudo, algo duvidosa. Os rumos que estes escritores deram ao conto têm pouco em comum com a arte de Tchekov. Todos foram observadores agudos dos seus ambientes, mas Tchekov sempre pretendia dizer alguma coisa, enquanto os outros diziam sem pretender nada. Tchekov não era cínico. Ele contemplou a vida humana e chorou; e nos seus textos descreveu e lamentou aqueles que mais merecem nossa piedade: os bichos maltratados e as crianças maltratadas, os sonhos profanados das mulheres, os talentos afogados no álcool, os ideais inacessíveis e a alegria de viver perdida para sempre. Ele é o poeta da vida mal vivida ou não vivida. Nos contos dos modernos seguidores de Tchekov os personagens falam por seus autores, ao passo que nos contos de Tchekov ele próprio fala pelos seus personagens. Tchekov nem sempre é Tchekov, e nisso reside sua grande arte, além, é claro, do talento de um gênio sumamente original.

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