terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Ensaio sobre a Infidelidade


A leitura de Madame Bovary me deixou várias e fortes impressões, três delas, porém, jamais esqueci. Primeiro, o texto é de fato perfeito; segundo, sua perfeição é tediosa; e terceiro, a despeito das impressões anteriores, nunca mais pude encarar o amor com a mesma ingenuidade. Por que? Bem, leia!... Se, no amor, você já passou pela experiência de trair ou ser traído, leia.
Madame Bovary tornou Flaubert, num momento, famoso e infame. Ele foi levado aos tribunais sob a acusação de “cínica imoralidade”. Contudo, satisfazer o sensualismo do leitor foi coisa que jamais lhe passou pela cabeça, não fora para isso que dedicara seis anos de trabalho àquele livro. Nele apenas descreveu a infidelidade como teria descrito a varíola, desapaixonadamente e sem ênfase. O pasmo não passava de uma reação acidental a uma análise crua e aguda nunca dantes realizada acerca da traição.
O triunfo de Madame Bovary fez mal a Flaubert, porque levou o público a ver-se no espelho; quando esse público percebeu que Flaubert interessava-se mais pela realidade do que pelo entretenimento erótico, abandonou-o – deixando-o entregue aos que ainda eram capazes de suportar a visão de si mesmo.
Em cada detalhe Flaubert vai-nos recriando em seu romance, toda a nossa humanidade está lá. O primeiro tipo, como já esperávamos, é um médico de aldeia, Charles Bovary, imensamente mais real que o virtuoso monstro de Balzac em “O Médico do Interior”; e mais real porque mais medíocre; nada se parece tanto com a vida como a mediocridade. Charles Bovary estabelece-se numa aldeia em que o único rival era o boticário Homais, sujeito manhoso que “curava” ilegalmente e matava menos que Bovary. O médico se queixa; limita-se a exercer sua profissão com diligência só igual a sua incompetência. Vive calmamente e tem a felicidade de não ter história, até que se casa com uma mulher bonita, Ema Bovary.
Ela é o mais complexo e bem acabado retrato da inconstância, da insatisfação e da fraqueza humana. Devoradora de livros românticos e melosos (o equivalente das telenovelas de hoje), Ema atribui e espera do pobre marido as qualidades heróicas e sentimentais que vê nos romances preferidos. Mas, aí, até um Don Juan, é muitas vezes um aborrecimento para sua mulher: depois dum ano ou dois ela conhece todas as idéias do esposo, ouvi-o falar demais, abusou-se dele, boceja antes suas aspirações sem ambição. Pior para Charles, pois do ponto de vista duma mulher a ambição é a maior virtude de um homem. Ele, porém, está contente sendo o que é; cai na rotina em tudo, seja trabalho ou sexo. É quando Flaubert nos diz:

“Suas expansões tornam-se regulares; possui a esposa em dias fixos. Ela era apenas mais um hábito na sua lista de hábitos.”

Ema Bovary sente-se inquieta, arrependida, como poderá suportar aquela vida. Decide então ter um filho, mas ao contrário do que esperava, isso só lhe faz aumentar o tédio. Logo a criança é desprezada. Ema torna-se pálida, com palpitações. Charles receita-lhe valeriana e banhos canforados. Ela quer algo mais. É quando surge Rodolfo, um forasteiro, que diz a Ema o que há um ano Charles esqueceu-se de dizer – que ela é formosa e encantadora. Rodolfo é um cafajeste charmoso, que a seduz com silogismos, aliás supérfluos. Raramente a arte foi tão feliz ao retratar a vulgaridade de uma relação de interesses baratos. Durante meses, Ema e Rodolfo encontram-se secretamente – e tanto amor e paixão ela despejou-lhe em cima, que ele depressa sentiu-se encharcado. Quanto mais ela redobrava de ternura, menos Rodolfo escondia sua indiferença. Ema então propõe uma fuga, ele manda-lhe um delicado bilhetinho e some. Desolada, Madame Bovary procura consolo na religião.
Reza até que um depois surge Leon, um leão de Paris, que lhe conta as glórias da cidade grande de onde acaba de chegar escapando de agiotas. Leon faz tudo na cama, dizendo sempre que “em Paris é assim”. Ema afunda num torvelinho de mentiras e de dívidas para manter esse luxo. Derrama sobre Leon a sua beleza e seus favores; mas novamente constata que os homens destruidores de lares não são tão bons amantes. Leon cansa-se de Ema e Ema de Leon...

“E de novo ela encontra no adultério todas as chatices do casamento”.

Esta é a idéia central do livro, e mais profunda de Flaubert. Por fim, Madame Bovary suplica-lhe que a auxilie no pagamento das dívidas que contraiu para custear a traição; Leon dá no pé e Ema suicida-se. Mas nos últimos momentos abraça o marido e exclama:

“Tu és bom, tu!”...


Eis a tragédia da bondade sem malícia e do amor que morre quando é retribuído demais. Charles Bovary nada sabe das aventuras da esposa; ama-a depois de morta ainda mais do que antes. Reúne suas coisinhas para beijá-las e entesourá-las; entre elas encontra as cartas de Rodolfo e alguns retratos. O choque e a decepção o arrebentam. Seu criado o encontra morto num banco de jardim.
Este desfecho é o único defeito de um livro que estava destinado a banir da literatura e da vida o irreal. Mesmo assim, nunca a infidelidade foi vista de tão perto.

2 comentários:

Badá Rock disse...

Eu gostei tanto desse livro, tanto. Embora seja constrangedor e às vezes revoltante. E quase nos mata de vergonha, por causa dos diálogos entre Ema e seus amantes...
Não tem comparação. Tem gente (boba) que o compara a Ana Karênina, mas não tem nada a ver: um é sobre costumes e moralidde, outro é sobre a essência do ser humano e o cansaço da vida.
Aliás, Bibliotecarius, fale-nos um pouco sobre autores russos. Amo os russos. Eles e os franceses têm uma coisa...

Mikuska disse...

bom texto. sempre gosto dos teus textos.

só os comentários do badá que são chatos, mas nao faz mal.

parabéns pelo blog.