Amigos e inimigos, fã e detratores concordam: Ulysses, seja obra-prima neo-homérica, seja monstro pseudo-dantesco, é um livro de importância excepcional, mas, sobretudo, um desafio ao nosso poder de leitura. Apenas não concordam quanto às conclusões críticas: alguns o consideram como o maior romance de todos os tempos, cume e suma do gênero; outros reconhecem em Ulysses a paródia definitiva do gênero, e lembrando-se do aforismo de Kierkegaard segundo o qual “toda fase histórica termina com a paródia de si mesma”, proclamam o romance de James Joyce como ponto final da história do romance. O próprio autor, presunçoso como ele só, dizia ter escrito "anti-livros", e que toda sua obra só podia ser lida por quem fosse capaz de dar sua vida por isso, ou, no mínimo, por quem sofresse de uma insônia crônica. Eu sofro de insônia - embora não seja crônica - e, francamente, não acho que a obra mereça tanto - embora deva confessar que só li, aliás, tentei ler Ulysses uma vez. E confesso também que só compreendi uma ínfima parte do seu conteúdo enorme, porque dediquei à leitura somente algumas semanas - firmemente decido a aproveitar para outras coisas o resto da minha vida. Todavia, isso não significa nada, e Ulysses tem direito a nossa consideração. Portanto, se você deseja lê-lo, permita algumas ressalvas: Como o próprio nome indica, Ulysses é um hipertexto, metatexto, ou seja lá o que for, da Odisséia de Homero. Logo, recomenda-se encará-lo só depois de ter feito o mesmo com a Odisséia. Todo o texto joyceano está rigorosamente constituído conforme o plano da segunda epopéia de Homero, embora suas mais de 900 páginas descrevam apenas um dia (16 de junho de 1904). Leopold Bloom é o moderno Ulysses, andando perdido, como meio estrangeiro, pelas ruas de Dublin, assim como Ulysses andou pelo arquipélago grego; é um Ulysses judeu porque, conforme certas filologias, às quais Joyce adere, os marujos na Odisséia são semitas de origem fenícia. Como judeu, Bloom é meio apátrida; e em vez de uma Penélope, casta e fiel, só tem a esposa Molly Bloom que não é nada disso. Em compensação, encontra um filho em Stephen Dedalus, seu Telêmaco. Custa até eles se encontrarem, e este ínterim é, então, a nova Odisséia. Cada momento do banalíssimo dia de Leopold Bloom corresponde a uma etapa da longa viagem de Ulysses: A submissão de Bloom com respeito a Molly, que fica deitada enquanto ele prepara o café-da-manhã, corresponde à prisão de Ulysses na ilha da musa Calipso. Enfim, Bloom sai de casa, mas no banho, entre água morna e perfumes baratos, quase esquece os negócios do dia; assim como Ulysses esqueceu-se da viagem distraindo-se com os lotofagos. Para assistir o enterro do seu cliente Dignam, Bloom repete a viagem de Ulysses ao mundo dos mortos. A leitura do tablóide que voa até ele trazendo notícias fúteis, assemelha-se ao encontro com Eolo, o fútil deus do vento. No restaurante, onde Bloom e amigos vão almoçar sem apetite, relemos o episódio homérico com os Lestrigônios, doentes de fastio. Entrando na Biblioteca, Bloom tem de passar entre duas estátuas imensas, como Ulysses navegando entre o estreito de Scila e Caribdis. Às 3 da tarde, as ruas de Dublin se põem em movimento, lembrando o fabuloso capítulo dos rochedos caminhantes. Nisso, Bloom chega ao pub, onde, devido a sua origem judaica, será ultrajado por um gigantesco fascista irlandês, que lembra o terrível Ciclope. (Joyce, com sua linguagem inventada, o descreve nestes termos: ombrilargo amplipeito perniforte olhifranco cabelirrubro!). Depois deste incidente ele é levado pelas garçonetes, cujo falatório o deixa ainda mais confuso, tal qual Ulysses ouvindo o canto das sereias. Dali ele vai à praia, onde encontra, semi-nua, a tentadora ninfeta Gerty, reencarnação de Nausicaa. Ao cair da noite, os estudantes bêbados que ele encontra na maternidade, onde foi visitar uma amiga, comportam-se como os ruidosos “bois do sol” do deus Apolo. Entre eles está o intrigante Stephen Dedalus (protagonista do primeiro e único romance legível de Joyce: Retrato do artista quando jovem), que trava amizade com Bloom e o atrai para um bordel. Lá, Bloom assiste a uma orgia comandada pela cafetina que - em tudo - espelha a feiticeira Circe transformando os marinheiros em porcos!... (Para mim, esse é um dos episódios mais impressionantes do romance: a orgia é descrita com uma imponência infernal digna de Dante). Por fim, Stephen resolve deixar os camaradas e resolve acompanhar Bloom até a casa deste. Mas antes entram num café, onde são molestados pela arenga de um marujo, que assim repete a cena do loquaz Eumeo. A seguir, e finalmente, os dois heróis da epopéia, agora juntos, retornam para casa, uma Ítaca diferente onde, em vez de Penélope, encontram Molly, deitada na cama, sonhando coisas eróticas enquanto masturba-se, resumindo num enorme monólogo (40 páginas!), sem sintaxe nem pontuação, a sua vida – monólogo que não acaba, assim como não acaba o fluxo do tempo. Eis tudo, ou quase. Certamente passaram coisas despercebidas, e agora percebi que me esqueci de comentar o texto em si, que como alguns já devem saber é algo inteiramente inusitado. Joyce era excelente poliglota, de modo que seu estilo é babélico: plural e confuso. Ele sabia dizer tudo, em todas as línguas, de todas as épocas, com feito, disse coisas demais. Desafiou não só a semântica e a sintaxe, mas também a morfologia, que foi por ele genialmente violada. Todos os estilos e modos servem ao romancista. Na cena da maternidade, por exemplo, um estudante começa falando no inglês medieval de Chaucer, outro responde no inglês barroco de Shakespeare e Ben Johnson, segue-se a linguagem bíblica de Milton, depois as rimas de Pope, a narrativa sóbria de Defoe, a elegância cínica de Swift, o sentimentalismo de Fielding, a sonoridade oriental de De Quincey e a verbosidade cômica de Dickens, até descambar nas gírias grosseiras que prenunciavam os beatniks. Cumpre aqui avisar que o livro é bastante obsceno! Em comparação, as convulsões eróticas de D. H. Lawrence parecem pálido reflexo, faltando-lhe o humorismo cruelmente irônico de Joyce. Há ainda outros detalhes interessantes, porém irrelevantes (assim penso), cada capítulo corresponde a uma parte do corpo e não será difícil identificar qual. Cada um também é caracterizado por uma cor, conforme as significações místicas da escolástica concernentes às artes humanas: música, retórica, etc. Afinal, como se pode ver, Ulysses foi elaborado de acordo com um esquema de construção tão meticulosamente elaborado, que cabe perguntar: para que tudo isso? Não sei. Jamais decifrei tal charada. Pelo menos não por inteiro. Nem sei se quero, nem se vale a pena... Só sei que apesar da grande influência que Joyce exerceu, a sua obra continua única e inimitável. Pode ser considerada como sintoma de decomposição, literária e intelectual. Mas a literatura, ou o mesmo romance não acabou e nem vai acabar por causa disso – apenas ampliou-lhes o território. Ulysses é, de fato, um mistério e um desafio, mas por isso não pode dizer: “não será lido”, pois não se sabe se jamais foi lido e tampouco decifrado.
sábado, 14 de junho de 2008
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Um comentário:
Quem vai devorar sou eu! Gostei tanto do seu comentário!Nunca li nada tão interessante sobre UlYsses!
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