Por mais que Deus e a religião sejam aparentemente imperceptíveis na obra de Kafka, eles não estão ausentes. Sua literatura essencialmente onírica e estruturalmente absurda prefigura uma teologia desafiadora, cuja fé irrompe das convulsões de uma agonia de dúvida, como em santo Agostinho, Lutero, Pascal, Kierkegaard, Dostoievski e Nietzsche. Essa esplendorosa agonia Kafka encontrou nos fardos da vida cotidiana. Como judeu crescido em civilização cristã, ele absorveu o que havia de mais desconcertante nestas duas tradições religiosas: o fatalismo da eleição divina, ou melhor, a predestinação. Esse é o tema de toda a sua literatura, e cada um dos seus romances o observa sob diversos prismas. O Processo é um apólogo e uma apologia, ao mesmo tempo. Sob o véu da alegoria, Kafka instrui acusação contra a justiça do tribunal divino. O delito desconhecido do personagem K. é o pecado original. O processo judicial é o signo da predestinação. E o que K. evita, sem compreender, pelas suas atividades é a graça. A prisão de K. não passava de uma provocação por parte daquele estranho tribunal, segundo o qual, o próprio personagem tem de criar pelas suas atitudes as razões de sua absolvição ou condenação. E, sem querer, cria o delito mortal, prevalecendo-se obstinadamente da sua inocência. Faz tudo o que se pode fazer: contrata um advogado e um médico, corrompe o carcereiro e o escrivão. Mas eles não podem ajudá-lo porque nenhum deles compreende o processo melhor do que o próprio K., todavia todos estão convencidos da justiça e da onipotência do tribunal; por isso aconselham K. a confessar um crime que ele não conhece e nem pode conhecer. E neste contexto absurdo K. não faz mais que jogar o processo contra si mesmo. Ao longo de toda a narrativa o homem é apresentado como uma vítima passiva da perseguição celeste. No conto “A Colônia Penitenciária”, que é uma continuação de “O Processo”, vemos uma terrível máquina de precisão marcar no corpo dos forçados, por meio de agulhas incandescentes, os nomes dos delitos, que são desconhecidos dos próprios condenados. A tortura pela qual a sua culpa lhe será revelada é a única esperança, pois saber o nome do delito é a condição preliminar para saber justificar-se. No romance inacabado “O Castelo”, a questão se inverte, mas ainda requer a mesma resposta. Ainda nesta narrativa o herói se chama K., somente K.! E o seu adversário não é desta vez um tribunal, mas o Castelo, o lugar onde a graça e a redenção estão concentradas. Ao pé deste castelo há uma aldeia, onde os camponeses, crentes humildemente submissos, executam suas tarefas diárias. K. também desejaria ser camponês nessa aldeia. É preciso frisar: ele o quer, ele o exige mesmo. Desejaria obrigar o Castelo a conceder-lhe o direito de permanência na aldeia. Quer forçar esta comunhão com fiéis mesmo sem ser um “eleito”. E o que ele pode fazer para ser um eleito? Ninguém sabe. Predestinação! Mesmo depois de acolhido, K. é logo coagido a deixar a aldeia por um dos filhos do castelão. Ele então recorre a uma mentira dizendo que foi contratado para trabalhar como nivelador. Resolvem telefonar para o Castelo. E o Castelo responde de maneira surpreendente: sim, K. estava sendo esperado! É o primeiro dom voluntário da graça: mas contém uma punição. Pois o Castelo retorna o telefonema acrescentando: “K. tem permissão de ficar, mas o seu contrato foi um lamentável engano, não há necessidade de niveladores, portanto ele pode ficar, mas não pode participar da vida da aldeia. K. desespera-se pois embora presente não participa, sua existência não tem sentido. Eis-nos nas últimas linhas do romance inacabado. Mas uma anotação aponta-nos um fim: K. não tem o direito de compor a aldeia, mas considerando-se certas circunstâncias, ser-lhe-á permitido permanecer, isolado e excluído, até a morte. Em “O Processo” o céu instaura litígio espiritual contra o homem. Em “O Castelo” o homem instaura litígio contra o céu. São as conseqüências da lógica da predestinação. O homem em Kafka, recusa-se e revolta-se contra um misterioso sistema de seletividade divina. Acusa Deus, como Ivan Karamazov que entendia a predestinação como uma piada blasfema e absurda. Não parece que esse Deus deseja a participação do homem em sua própria redenção. No abismo entre o Deus tirânico dos crentes da predestinação como Santo Agostinho e Calvino, e o homem desavisado de sua condição metafísica, Kafka sonda o caminho da graça. No seu último diário, pouco antes de morrer, ele copiou as seguintes palavras de um sermão de Lutero:
“Deus não é inimigo dos pecadores, mas somente da soberba dos descrentes que não admitem os próprios pecados nem procuram o apoio de Cristo, mas que procuram temerária e estupidamente a purificação em si mesmos”.
A estas palavras, Kafka contrapôs o seguinte aforismo:
“Quem procurar não encontrará, quem não procurar será encontrado!”
Quando li este aforismo, imediatamente, lembrei-me das sábias palavras do filósofo católico Baisle Pascal:
“Consola-te: não me procurarias se já não tivesses encontrado!”
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