sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Um Teólogo Secular


A exemplo de outras obras excepcionais da literatura, das artes plásticas e da música, a ficção de Franz Kafka é a que hoje, mais contundentemente, convida o ser humano perplexo a decifrá-la, e faz desse convite uma armadilha religiosa. Na condição de indivíduo e escritor, Kafka foi uma seqüência de imensos paradoxos. As suas maiores obra de ficção – “O Processo” e “O Castelo” – não chegam a desafiar “Em Busca do tempo Perdido”, de Proust, “Ulysses”, de Joyce, ou mesmo “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann. No entanto pensamos no século XX como uma leitura de Kafka, e não de Proust ou Joyce, e muito menos de Thomas Mann. Na vida, ele foi do mesmo modo tão bem-sucedido quanto fracassado. Não tinha formado família; sua carreira jurídica na área de seguros era, na melhor, das hipóteses, sofrível e risível; o sucesso literário, avaliado por qualquer escala pessoal ou pública, escapou-lhe quase por completo; sua aparência física inspirava certa reação divertida, ou prognósticos desfavoráveis: quer pela feiúra, quer pela timidez; seus relacionamentos eróticos terrivelmente complicados – como seu prolongado noivado com Felice Bauer e seu amor por Milena – terminavam sempre mal. E sempre que se via na iminência de assumir um compromisso, Kafka refugiava-se na doença, a tuberculose, que viria a causar-lhe a morte prematura. Em qualquer biografia não podemos deixar de perceber a etiologia psicossomática da doença e de observar que era uma situação consentida. Kafka usava a doença como ela o usava, e essa reciprocidade tornava ainda mais profundos seus sentimentos de culpa. Tanto em relação aos ideais pessoais, literários e religiosos como às expectativas brutalmente expressas por seu pai, Kafka declarava-se um fracassado total, um decaído. Daí a culpa ser o seu tema mais recorrente e, por conseguinte, o objeto de sua “teologia secular”, disfarçada de literatura. Entretanto, por mais que negasse possuir sabedoria ou percepção religiosa, Franz Kafka foi, depois de Dostoievski, o mais arguto teólogo secular da moderna literatura ocidental. E cada vez que o releio percebo o quanto é estranha e, ao mesmo tempo, inquestionável sua profunda espiritualidade. Cumpre-me confessar que não gosto de Kafka, não sou fã, muito embora tenha lido tudo que dele pudesse encontrar com a mesma avidez e asco. Poucos escritores, só os grandes, conseguem tal proeza. Em meio a toda uma ambientação voltada para o mundano, o político e o racional, Kafka compõe um conjunto de parábolas, de alegorias, de aforismos e de comentários cuja essência é - técnica e substantivamente - sagrada, teológica e religiosa. É aí que se observa a ascendência espiritual pessimista de Pascal, Kierkegaard e Nietzsche, e ao mesmo tempo a influência ficcional de Dostoievski, primo literário, cuja força narrativa revela como a santidade encontra-se lado a lado com o mais profundo ódio. Neste termos, ousaria dizer que Kafka é um judeu eminentemente talmúdico, mas com aspirações de cristão protestante. As aflições de Caim e Abel, de Abraão e Isaac, de Jó e seus amigos, de Judas e Jesus Cristo, cuja dialética é desafiadora e enigmática, são as mesmas aflições que atormentam Gregor Sansa, Joseph K. e todos os K. que figuram na obra de Kafka, e terminam por destruí-lo. A tristeza, a angústia e o desalento supremos dos seus livros, suas cartas, seus diários, de tudo, enfim, que ele escreveu, é incomensurável. Porém ele também era um satirista social, um virtuoso do grotesco, do absurdo, que sabia parodiar os temas mais sérios. Não obstante, sob todos os chistes, piadas e anedotas, as invenções ficcionais de Kafka constituem uma prodigiosa façanha de indagação metafísico-religiosa. Reconheço que Kafka é escorregadio e bastante refratário às definições, e tudo que diz respeito a esse artigo é paradoxal, pois Kafka certamente dele fugiria. Mas do que não fugia Kafka?
Além de ter sido o teólogo da dúvida, Kafka foi também o gênio literário do isolamento. E toda a sua obra perturbadora ensina-nos a vislumbrar o quanto podemos "ser" ou "estar" sozinhos.

Um comentário:

fatimapombophotos disse...

ao meu ver
entender Kafka eh preciso antes de mais nada mergulahar na sociedade tcheca do tempo em que ele viveu.
o antisemitismo predominante, a loucura do pai dele querendo ser aceito nesta sociedade e por ai vai.....
nao consigo ver nada de protestantismo ou cristianismo na obra dele, muito menos dostoievsky ou joyce,
mas cada um ver o que achar melhor naquilo que leh! e nao sou eu quem vai mudar o mundo....