Shah Muhammad, o livreiro-biliotecário de Cabul, perdeu a conta de quantas vezes teve que colocar tiras de papel sobre ilustrações de livros durante o reinado iconoclasta do Talibã. Lembrei-me disso ontem quando percebi que era o dia do ilustrador.
Sempre achei a iconoclastia uma das mais estúpida supestições humanas. Para mim é um despropósito, uma falta de consideração com a arte. E nem gosto de me imaginar nas circunstâncias do meu colega afegão. Não obstante, volta e meia, acabo esbarrando em pseudo-intelectuais que são aspirantes a talibãs.
Outro dia, aqui na biblioteca, um cara ficou horrorizado porque eu disse que tinha comprado uma edição do Paraíso Perdido (de Milton) ilustrada por Gustave Doré - o mais clássico dos ilustradores!... Por meia hora tive que aturá-lo dizendo que o texto, por si só, permite várias leituras, desperta diferentes concepções, e que a ilustração desvirtua cenas que, se apenas lidas, são ricas em significados, e blá,blá,blá!... Naturalmente, contestei tentando fazê-lo compreender que a soma de texto e imagem amplia o universo de significações de um livro. É uma forma de apurar a sensibilidade do leitor, de oferecer uma perspectiva fiel da realidade descrita. Sem falar que também é um meio de educar gostos estéticos (sobretudo nesta era das telas). Uma pessoa de roupa suja e maltrapilha na Pérsia do século X pode significar algo completamente diferente nos dias atuais. Como eram as casas de lá e as carroças? Neste caso a ilustração pode entrar numa simbiose ainda maior com o texto e situar adequadamente o leitor moderno.
Porém, como e impossível argumentar com radicais, acabei gastando meu latim em vão. O cara não se convenceu.
Azar o dele, aprendi que mau gosto não se discute, lamenta-se. E jamais vou dispensar um livro com figuras.
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