sexta-feira, 25 de abril de 2008

Dos sebos, das rasuras, da leitura do mundo!


Parece título de Schopenhauer, mas não chega a tanto. Trata-se apenas de uma reflexão, ou melhor, de uma digressão (resultado de horas vadias) acerca de sebos, de livros velhos, e de como tais coisas afetam nossa capacidade de leitura. Veja bem, eu nunca gostei de sebos. Para mim o nome é em si já bastante repelente, devido ao homônimo malcheiroso que asquerosamente nos remete a cravos, espinhas, furúnculos, e outras excrescências insondáveis, porque mais endógenas e indecorosas. E, dada minha rinite alérgica, sempre evitei os livros antigos, os códices, os incunábulos e alfarrábios, cuja visão, ainda que distante, era suficiente para desencadear a mais incômoda, medonha e obstinada crise de coriza já sofrida por um nariz humano. Para mim estes antros, estes cemitérios de brochuras decrépitas eram verdadeiros ninhos de ácaros e esporos, então cultivados numa poeira secular que o proverbial desleixo dos livreiros vai deixando se acumular de modo onipresente.
Revestido e convencido deste preconceito higiênico, eu resisti à visão idílica e até mesmo glamourosa que os sebos inspiram nos leitores mais românticos, e assim os evitei heróica e diligentemente até que, certo dia, por uma necessidade ocasional, meu amigo Emerson Coelho arrancou-me deste equívoco.
Este amigo, já um conhecido nosso, é, no dizer poético de Drummond, um destes habitués de sebo, um freqüentador crônico, acometido das taras que todo bibliófilo sente no contato com as obras condenadas ao esquecimento. É o típico farejador sutil que procura sempre e infatigavelmente uma pérola esfarrapada ou um diamante hipotético, mesmo sabendo que talvez não o encontre jamais, nunca entre aqueles restos de literatura, mas que todavia insiste, porque qualquer encontro o satisfaz. Procurar, mesmo não achando, é a sua arte e fetiche.
Ora, foi então na companhia deste amigo fabuloso que passei a freqüentar sebos, e conquanto não tenha o mesmo faro atilado, descobri o prazer de vascular, de escavar, de perscrutar, qual arqueólogo, as vetustas e caóticas prateleiras de livros arruinados, e do meio delas sair todo sujo e empolgado trazendo comigo velhas novidades. Acabei deste modo adquirindo um hábito, que virou mania e depois paixão, mas que agora corre o risco de se converter em filosofia fenomenológica. Isso mesmo. Desde que passei a conviver com estes livros gastos e idosos, reparei que já não sou um simples leitor, isto é, um leitor comum, como qualquer outro que se restringe ao texto. Sem a mínima reserva ou circunspeção, devo confessar que sou hoje um X-leitor, um mutante literário, cuja capacidade de inteligir vai além da palavra escrita. Mas sei que não sou o único, e estou certo de alguém aqui, certamente, se identificará comigo. Permita então uma melhor exposição dos fatos.
Primeiro, como nunca me fiei no acaso, passei a acreditar numa “afinidade eletiva” entre o livro e o leitor. Enquanto vagava pelos sebos, eu percebia que meus encontros com os livros se davam tal como o encontro daqueles passantes que no Canto XV do Inferno de Dante “olham uns para os outros quando a luz do dia se torna penumbra e descobrem subitamente um vislumbre, uma palavra, uma atração irresistível”. Isso me lembra um adágio latino, de um monge e ensaísta medieval que dizia: “Habent sua fata libelli”, ou seja, “os livros têm seu próprio destino”. Com efeito, sempre que compro livros de sebos fico imaginando como alguns deles esperaram anos e décadas para chegarem até a minha estante, a qual parece terem sido destinados. Como manuscritos perdidos do Mar Morto, como todo livro que chegou até nós das mãos de leitores remotos no espaço e no tempo, cada um dos meus livros traz consigo um relato incógnito de sua própria sobrevivência. E essa sobrevivência é análoga a do Universo, que segundo os antigos cabalistas, não depende de que o leiamos, mas apenas da possibilidade de que o leiamos. No ensejo, aproveitando a analogia cabalística, poderia acrescentar que tais livros encerram em si um microcosmos, um mundo diminuto que pode ser observado através de suas páginas rasgadas e carcomidas, das rasuras, das anotações, do desgaste da capa ou contracapa. É a partir disso que se amplia nossa capacidade leitura. Quem nunca sentiu o prazer curioso de segurar nas mãos um volume que pertenceu a outro leitor, evocado como um fantasma por meio do murmúrio de umas poucas palavras rabiscadas na margem, uma assinatura ou dedicatória na guarda do livro, uma foto perdida, uma rosa ou folha seca usada como marcador, uma gota de café, uma mancha de vinho ou mesmo uma lágrima reveladora. Os livros usados oferecem aos novos leitores uma visão de relance, mesmo que secreta ou distante, das vidas de outros leitores, e permite que tenham, por meio destes vestígios aparentemente banais, todavia conservados para seu escrutínio, uma simpatia, uma identificação, um certo conhecimento de sua própria condição.
Mas para isso é preciso ser perspicaz, é preciso ser um bom leitor. Somente quando olhos capazes, como o de Miss Marple de Agatha Christie, fazem contato com os sublinhados, as manchas e rasuras das páginas é que o texto ganha um significado que está além do seu enredo. Toda escrita depende da generosidade do leitor. E sem essa generosa capacidade o texto torna-se novamente marcas silenciosas. Cada leitor deve ter o propósito de assegurar uma modesta imortalidade aos livros. A leitura é, nesse sentido um rito de renascimento. Mas como já disse antes, isso não se restringe ao texto nem as suas entrelinhas, devemos observar tudo o que circunda. A verdadeira leitura consiste na experiência registrada e resgatada das páginas, e novamente transformada em experiência, em palavras que tanto se refletem no mundo exterior como no próprio ser do leitor. Eu sei que essa hiperleitura nem sempre é fácil. É preciso certo pendor investigativo, e um tanto de falta do que fazer. Porém o benefício é inestimável. Como nos ensinam os detetives da ficção, os livros velhos por vezes nos ajudam a formular as perguntas que desejamos fazer, mas não necessariamente decifrar as respostas. Nem sempre trazem uma coerência, uma lógica ou propósito ao texto. Isso (como Miss Marple tornaria claro) é tarefa do leitor, a marca de sua liberdade, do seu poder de inteligibilidade.
E sem modéstia, ouso afirmar que, desde que freqüento sebos, estou a um passo da aquisição deste poder, pois sei que há livros em que as notas de rodapé, ou os comentários rabiscados por algum leitor pretérito são mais interessantes do que o texto. O mundo, a vida, a realidade e os outros são alguns destes livros a serem lidos. Aqui, o ato de ler nos ajuda a entender nossa relação hesitante com nós mesmos, o encontro, o toque, a decifração de signos que são gestos e palavras. A literatura nos propicia a capacidade de ler tudo o que nos cerca, basta querer. Como dizia Lady Macbeth, de Shakespeare: “Tua face, meu cavaleiro, é como um livro onde olhos agudos podem ler coisas estranhas”. O hábito de ler nos faculta o poder ver o que está aquém e além, é um processo que envolve não somente visão e intelecção, mas inferência, percepção, julgamento, memória, reconhecimento, experiência e prática.
Leiam mais, sempre, infatigavelmente, livros velhos ou novos, pois como dizia Platão: aqueles que podem ler, vêem duas vezes melhor.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Querenças...

No imediatismo das releções, a gente sempre se pergunta se a paixão e o desejo que se tem hoje perdurará amanhã. Parece que aqui há uma resposta que precisamos ouvir!...
Tem coisas que só a Cosac Naif faz por vocêAlinhar à direita.

Um blog que não está nem aí!

quarta-feira, 23 de abril de 2008

O pai do conto moderno


Anton Tchekov é, na minha opinião, o único escritor russo que não era histérico. Quem já teve o imenso prazer de ler qualquer um dos seus textos, sabe que neles não encontrará a titânica força épica de Tolstoi, nem o misticismo furioso de Soloviev, e tampouco as tempestades morais que assolam os romances de Dostoievski. Tchekov é sereno. Diria que é quase um santo - um dos poucos santos da literatura, como Samuel Beckett e Walt Withiman - embora possa ser considerado o menos espiritual e o mais humano dos gênios literários. Maxim Gorky, em suas Memórias, sobre o amigo Tchekov, afirmou que, na presença do grande dramaturgo e contista, “todos sentiam um desejo inconsciente de serem menos dissimulados, mais verdadeiros, mais eles mesmos”. Não duvido, nos contos e mesmo nas peças, podemos perceber que a bondade de Tchekov sempre mitiga a ironia. Mas isso não diz tudo. Tolstoi, que era um juiz implacável de seus colegas, foi sempre apaixonado por Tchekov, quer como escritor quer como pessoa, e considerava a grandeza humana do autor superior àquela apenas vislumbrada em sua obra. A generosidade de Tchekov estava relacionada ao seu respeito pela simplicidade do ser humano. Dostoievski, que, assim como Tolstoi, admirava Tchekov, enfatizava sua implacabilidade com qualquer ato vulgar ou mesquinho. No mais, Tchekov era uma fonte de benignidade com todas as pessoas.
Hoje porém a glória sempre presente do dramaturgo Tchekov não sobreviverá, talvez, à influência bem mais ampla e mais profunda do contista Tchekov. Os contemporâneos do escritor o liam como uma espécie de Maupassant russo. Mal percebiam eles que Tchekov não era um duo do extraordinário Maupassant, mas sim uma extraordinária alternativa aos leitores de contos acostumados a Maupassant. Se o francês passou a posteridade como o mais clássico dos contistas, Tchekov despontou como o grande inovador, o pai do conto moderno. Sua originalidade consiste em não compor histórias com começo, meio e fim (o que contraria todo o postulado acerca da composição do filósofo Aristóteles na “Arte Poética”). Seus contos não trazem grandes acontecimentos, sequer apresentam enredos: tudo isso é substituído por uma visão instantânea, uma impressão por assim dizer impressionista, que já é, em miniatura, uma visão completa da vida. Assim entendeu o público, assim entenderam Katherine Mansfield, James Joyce, Virginia Woolf, Clarice Lispector, Fraçois Mauriac, Julien Green, Lúcio Cardoso, et caterva. E daí começou a história do conto moderno, do conto sem enredo, fragmentário, impressionista. Mas a filiação é, apesar de tudo, algo duvidosa. Os rumos que estes escritores deram ao conto têm pouco em comum com a arte de Tchekov. Todos foram observadores agudos dos seus ambientes, mas Tchekov sempre pretendia dizer alguma coisa, enquanto os outros diziam sem pretender nada. Tchekov não era cínico. Ele contemplou a vida humana e chorou; e nos seus textos descreveu e lamentou aqueles que mais merecem nossa piedade: os bichos maltratados e as crianças maltratadas, os sonhos profanados das mulheres, os talentos afogados no álcool, os ideais inacessíveis e a alegria de viver perdida para sempre. Ele é o poeta da vida mal vivida ou não vivida. Nos contos dos modernos seguidores de Tchekov os personagens falam por seus autores, ao passo que nos contos de Tchekov ele próprio fala pelos seus personagens. Tchekov nem sempre é Tchekov, e nisso reside sua grande arte, além, é claro, do talento de um gênio sumamente original.

Tchekhov e Tolstoi


Ele amava Tchekhov, seus olhos ficavam ternos e pareciam querer chorar sempre que este o visitava. Certa vez, Tolstoi me disse: Ninguém até hoje foi capaz de escrever a seu respeito sem demonstrar o mais profundo afeto e amor; e ele, o autor, é sempre o personagem mais positivo de sua própria ficção.


Trecho das "Memórias" de Gorki onde relata a afeto de Tolstoi por Tchekov.

domingo, 13 de abril de 2008


Eu poderia estar matando, eu poderia estar roubando, mas eu estou blogando!

A Diva dos Detetives


Se existem coisas que são de competência eminentemente feminina, uma delas é a literatura policial. Não sei por que, mas é um fato. Salvo algumas ilustres exceções – Conan Doyle, Chesterton, Simenon – ninguém consegue ser mais intrigueiro ou tece melhores enredos do que elas, e no sentido mais ardiloso que a palavra enredo pode ter. Seria isso uma aptidão concernente ao sexo?... Dorothy Sayers, por exemplo, é um destes casos de excelência na invenção e na técnica - não tão boa quanto a Patricia Highsmisth, mas certamente bem melhor do que Agatha Christie. Nunca ouviu falar? Que pena, deixe então que eu fale... Dorothy Sayers era inglesa, nascida em Oxford, filha única de um pastor de uma congregação rural, que também era músico, e de uma mulher de educação modesta, mas caridosa e bastante orgulhosa de uma ancestralidade que vinha de um irmão do grande ensaísta inglês William Hazlirt. Vivendo no campo, Dorothy cresceu sem amigos de sua idade e por isso entretinha-se lendo vorazmente, escrevendo contos, poemas, imaginando o mundo lá fora ou meditando sobre os detalhes da Bíblia e da religião cristã, que lia como se fosse uma novela. Quando tornou-se adolescente, Dorothy voltou a sua Oxford natal para ingressar na universidade, onde teve uma carreira estudantil destacada graduando-se em literatura e arte. Foi também em Oxford que serviu como secretária do homem com que teria seu primeiro caso amoroso – amoroso é força de expressão – o primeiro de suas muitas desditas nesse domínio. De outras duas relações malogradas teve um filho ilegítimo que resultou ser um belo e inteligente lord do exército de sua Majestade. Ela só encontrou um marido tardiamente, com quem tinha afinidades e gostos, embora os últimos dias dele escurecessem os dela ao ficar doente, alcoólatra e intratável. É o que basta lembrar da pouco edificante mas angustiada odisséia que Dorothy Sayers teve de enfrentar enquanto desenvolvia seus dotes literários. À semelhança de Henry James que escreveu uma teoria completa da novelística, ela expôs a da trama policial, usando sua erudição ora com seriedade, ora com humor. Entrevistada sobre o assunto, Dorothy manifestou sem rodeios seu modo desassombrado de escrever e falar: “os imbecis e diretores de revista pediram-me para analisar a ficção criminal do ponto de vista da mulher, eu disse então que isso era uma estupidez, era o mesmo que perguntar qual o ângulo feminino de um triângulo eqüilátero!” Além de ficção criminal, ela escreveu sobre estética em geral, e nesse campo recebeu ótimas críticas da filósofa e santa Edith Stein. No livro “The Mind of the Maker”, por exemplo, ela desenvolve a tese de que a experiência comum de produzir, ou criar qualquer coisa, corresponde às significações simbolizadas e hiperdimensionadas pela Santíssima Trindade. Primeiro vem a idéia criadora, que antevê toda a obra terminada. Esse é o Pai. A seguir vem a energia criadora, a qual se empenha numa vigorosa luta com a matéria superando um obstáculo após o outro. Esse é o Filho. O terceiro é o poder perpetuador do efeito estético e transcendente que a obra produz, e de tal modo a influir na alma do usuário-contamplador. Esse é o Espírito Santo. Todos os três são indispensáveis ao perfeito acabamento de qualquer obra criadora. Dorothy era profundamente espiritualizada e tinha participação ativa e militante em sua Igreja, contudo era bastante tolerante e autocrítica em relação à prática religiosa. Neste mundo ela pensava que crer em Deus era indispensável para responder a inevitáveis interrogações cósmicas, é como um ponto fixo pelo qual é possível solucionar as questões terrenas; mas pedir ou impor uma determinada concepção doutrinária só garantia divisão e opressão. Ela era explicitamente uma cristã pragmática; mais de uma vez, em vários contextos, escreveu: “A primeira coisa que uma observância estrita faz é matar alguém!...” Dorothy via o evangelho como um texto polissêmico, cujas possibilidades de interpretação eram renováveis e variadas; era como um alfabeto único que servia para expressar as mais diversas línguas. Os escritores C. S. Lewis e J. R.R. Tolkien, respectivamente protestante e católico, foram dois dos seus grandes amigos e admiradores. Quando morreu, aos 64 anos, inúmeros intelectuais referiram-se a ela em termos altamente elogiosos. Diziam que sua literatura tinha dois méritos: era facilmente legível e dramaticamente convincente. Se hoje anda esquecida, ou passa despercebida, não é por culpa dela, mas, como já disse outras vezes, por causa das trevas que assolam espiritual e intelectualmente nossa adorável era moderna.

Livros são como casulos, nos cercamos deles e então crescemos, deixando-os para trás como sinais de nossos estágios anteriores de desenvolvimento.


Dorothy Sayers