sábado, 14 de junho de 2008

Da série: Quéisso??????????!


Há cinquntas anos atrás, no dia 16 de junho de 1958, Marilyn Monroe foi fotografada lendo (ou tentando ler) "Ulysses", de James Joyce... Reparem na expressão da moça: reflexiva, espantada, estarrecida, confusa, catatônica ou cara-de-choro? Não importa. A pergunta certa é: quanta humilhação e maldade pode suportar uma serumana???

Depois, ninguém entende porque (quatro anos depois) ela se matou!...

BLOOMSDAY


Toda a substância do romance "Ulysses" é simplesmente o dia 16 de junho de 1904, em Dublin. Cidade a margem do mundo que não nos importa em nada, num dia em que nada aconteceu; a não ser o retorno de Stephen Dedalus e seu encontro com Leopold Bloom. Nunca mais a literatura seria a mesma.

Literatura casca grossa


James Joyce certa vez confessou a um amigo: "Quando jovem, uma das coisas com as quais não conseguia me acostumar era a distância entre a vida real e a literatura". Qualquer leitor que sabe apreciar boa leitura percebe a diferença. Joyce passou toda a sua carreira tentando aproximar essas realidades e, sem perceber, acabou revolucionando a ficção do século 20. Ele trouxe sua própria vida para a literatura. Nascido nos arredores de Dublin, em 1882, James Augustine Aloysius Joyce era o mais velho dos dez filhos do casal John e Mary Jane Joyce. O pai, beberrão espirituoso e irascível, era um provedor negligente. A mãe, católica devota, impotente diante das adversidades da vida, assistiu resignada e contrita à ruína da família. Em 1902, ao terminar seus estudos na Trinity College, em Dublin, Joyce achava que já sabia o bastante para dispensar a religião, a família, a terra natal e a coroa britânica. A literatura seria sua vocação e sua passagem para a imortalidade. No final de 1904, Joyce deixou a Irlanda em direção ao continente, levando na cabeça todas as histórias que um dia iria escrever. Ao lado de Nora Barnacle, jovem camareira da região de Galway, que ele conheceu num hotel de Dublin, o escritor andou por cidades como Pola, Trieste, Zurique, Roma e Paris. Para sustentar a esposa e os dois filhos, Joyce trabalhava como professor ou escriturário. Esse período pode ser definido como uma sucessão de crises. Aliás, toda a sua vida foi uma crise intermitente, que só terminou com sua morte, quando refugiado na Suíça, praticamente cego, separado da filha esquizofrênica que ele adorava e que ficou sozinha, internada num hospício na França sem poder deixar o país recém-ocupado pelos alemães. Uma biografia de partir o coração, a bibliografia porém.. Seu primeiro livro de ficção, "Os Dublinenses" (1914), contém 15 contos, pobres de enredo mas ricos em linguagem e força evocativa. "Retrato do Artista Quando Jovem", escrito dois anos mais tarde, traz um relato lingüisticamente complexo, mas, ao mesmo tempo, bastante objetivo sobre a vida de Stephen Dedalus - o próprio escritor - desde seu nascimento até a partida de Dublin. O livro teve pouca saída, mas seu trabalho já havia atraído a atenção de vários artistas de vanguarda, incluindo o poeta americano Ezra Pound, que acreditava na necessidade de uma renovação completa na arte, na poesia e na música. Os aliados de Joyce uniram forças para promover sua literatura experimental. O escritor irlandês, é claro, não os decepcionou. "Ulysses" começou a ser escrito em 1914. Alguns trechos da obra apareceram em publicações como "Egoist", na Inglaterra, e "Little Review", nos Estados Unidos, até que o serviço dos Correios, alegando obscenidade, resolveu confiscar três números da revista, contendo fragmentos escritos por Joyce. Seus editores tiveram de pagar uma multa de US$ 100. A ameaça de censura apenas serviu para aumentar a curiosidade sobre o novo livro. Antes mesmo de "Ulysses" ser publicado, em 1922, os críticos já comparavam as inovações literárias de Joyce ao impacto causado pelos trabalhos de Einstein e Freud. Toda essa comoção tinha um motivo claro. Em primeiro lugar, Joyce dispensou a maior parte das técnicas de narração empregadas na ficção do século 19. O livro não tem uma trama distinta -uma sucessão de obstáculos que o herói deve enfrentar na busca de um final feliz. Não existe um narrador onisciente, pronto para guiar o leitor, descrevendo os personagens e seu ambiente, fornecendo detalhes, resumindo os acontecimentos e explicando, aqui e ali, o significado moral da história. Talvez a descrição mais clara e concisa da técnica usada pelo escritor seja a do crítico Edmund Wilson: "Em "Ulysses", Joyce usou as palavras de maneira exaustiva, precisa e direta para retratar a nossa participação na vida - ou melhor, como ela se apresenta a nós, em cada momento vivido". Depois de "Ulysses", a literatura do século 20 passou a dispor de um ponto de referência. Com múltiplas vozes narrativas e um jogo de palavras extravagante, o livro é um verdadeiro dicionário de estilo para os escritores que tentam descrever a contemporaneidade da vida. Existe um pouco de "Ulysses" nas obras de escritores como William Faulkner, Albert Camus, Samuel Beckett, Saul Bellow, Gabriel García Márquez, Thomas Phyncon e Toni Morrison. Todos, com exceção de Joyce, receberam o Prêmio Nobel de Literatura. Mas o único autor que ousou superar o alcance enciclopédico de "Ulysses" foi o próprio Joyce. Apesar do volume e da complexidade, dos neologismos e dos jogos verbais, "Ulysses" ainda é ninharia perto do que viria depois. No intuito obsessivo de se superar, o escritor dedicou dezessete anos de trabalho a "Finnegans Wake", escrito com o objetivo de retratar a vida adormecida de Dublin com a mesma minúcia com que o escritor tinha explorado, em "Ulysses", o lado desperto da cidade. Joyce resolveu então inventar uma linguagem que imitasse a experiência dos sonhos. Hoje em dia, apenas os joyceanos mais dedicados se dispõem a enfrentar o obscuro "Finnegans Wake". Quem sabe, daqui a um século, seus leitores conseguirão alcançá-lo. Ou, o mais provável, ninguém mais queira ouvir falar dos livros de James Joyce.

Decifra-me ou te devoro...


Amigos e inimigos, fã e detratores concordam: Ulysses, seja obra-prima neo-homérica, seja monstro pseudo-dantesco, é um livro de importância excepcional, mas, sobretudo, um desafio ao nosso poder de leitura. Apenas não concordam quanto às conclusões críticas: alguns o consideram como o maior romance de todos os tempos, cume e suma do gênero; outros reconhecem em Ulysses a paródia definitiva do gênero, e lembrando-se do aforismo de Kierkegaard segundo o qual “toda fase histórica termina com a paródia de si mesma”, proclamam o romance de James Joyce como ponto final da história do romance. O próprio autor, presunçoso como ele só, dizia ter escrito "anti-livros", e que toda sua obra só podia ser lida por quem fosse capaz de dar sua vida por isso, ou, no mínimo, por quem sofresse de uma insônia crônica. Eu sofro de insônia - embora não seja crônica - e, francamente, não acho que a obra mereça tanto - embora deva confessar que só li, aliás, tentei ler Ulysses uma vez. E confesso também que só compreendi uma ínfima parte do seu conteúdo enorme, porque dediquei à leitura somente algumas semanas - firmemente decido a aproveitar para outras coisas o resto da minha vida. Todavia, isso não significa nada, e Ulysses tem direito a nossa consideração. Portanto, se você deseja lê-lo, permita algumas ressalvas: Como o próprio nome indica, Ulysses é um hipertexto, metatexto, ou seja lá o que for, da Odisséia de Homero. Logo, recomenda-se encará-lo só depois de ter feito o mesmo com a Odisséia. Todo o texto joyceano está rigorosamente constituído conforme o plano da segunda epopéia de Homero, embora suas mais de 900 páginas descrevam apenas um dia (16 de junho de 1904). Leopold Bloom é o moderno Ulysses, andando perdido, como meio estrangeiro, pelas ruas de Dublin, assim como Ulysses andou pelo arquipélago grego; é um Ulysses judeu porque, conforme certas filologias, às quais Joyce adere, os marujos na Odisséia são semitas de origem fenícia. Como judeu, Bloom é meio apátrida; e em vez de uma Penélope, casta e fiel, só tem a esposa Molly Bloom que não é nada disso. Em compensação, encontra um filho em Stephen Dedalus, seu Telêmaco. Custa até eles se encontrarem, e este ínterim é, então, a nova Odisséia. Cada momento do banalíssimo dia de Leopold Bloom corresponde a uma etapa da longa viagem de Ulysses: A submissão de Bloom com respeito a Molly, que fica deitada enquanto ele prepara o café-da-manhã, corresponde à prisão de Ulysses na ilha da musa Calipso. Enfim, Bloom sai de casa, mas no banho, entre água morna e perfumes baratos, quase esquece os negócios do dia; assim como Ulysses esqueceu-se da viagem distraindo-se com os lotofagos. Para assistir o enterro do seu cliente Dignam, Bloom repete a viagem de Ulysses ao mundo dos mortos. A leitura do tablóide que voa até ele trazendo notícias fúteis, assemelha-se ao encontro com Eolo, o fútil deus do vento. No restaurante, onde Bloom e amigos vão almoçar sem apetite, relemos o episódio homérico com os Lestrigônios, doentes de fastio. Entrando na Biblioteca, Bloom tem de passar entre duas estátuas imensas, como Ulysses navegando entre o estreito de Scila e Caribdis. Às 3 da tarde, as ruas de Dublin se põem em movimento, lembrando o fabuloso capítulo dos rochedos caminhantes. Nisso, Bloom chega ao pub, onde, devido a sua origem judaica, será ultrajado por um gigantesco fascista irlandês, que lembra o terrível Ciclope. (Joyce, com sua linguagem inventada, o descreve nestes termos: ombrilargo amplipeito perniforte olhifranco cabelirrubro!). Depois deste incidente ele é levado pelas garçonetes, cujo falatório o deixa ainda mais confuso, tal qual Ulysses ouvindo o canto das sereias. Dali ele vai à praia, onde encontra, semi-nua, a tentadora ninfeta Gerty, reencarnação de Nausicaa. Ao cair da noite, os estudantes bêbados que ele encontra na maternidade, onde foi visitar uma amiga, comportam-se como os ruidosos “bois do sol” do deus Apolo. Entre eles está o intrigante Stephen Dedalus (protagonista do primeiro e único romance legível de Joyce: Retrato do artista quando jovem), que trava amizade com Bloom e o atrai para um bordel. Lá, Bloom assiste a uma orgia comandada pela cafetina que - em tudo - espelha a feiticeira Circe transformando os marinheiros em porcos!... (Para mim, esse é um dos episódios mais impressionantes do romance: a orgia é descrita com uma imponência infernal digna de Dante). Por fim, Stephen resolve deixar os camaradas e resolve acompanhar Bloom até a casa deste. Mas antes entram num café, onde são molestados pela arenga de um marujo, que assim repete a cena do loquaz Eumeo. A seguir, e finalmente, os dois heróis da epopéia, agora juntos, retornam para casa, uma Ítaca diferente onde, em vez de Penélope, encontram Molly, deitada na cama, sonhando coisas eróticas enquanto masturba-se, resumindo num enorme monólogo (40 páginas!), sem sintaxe nem pontuação, a sua vida – monólogo que não acaba, assim como não acaba o fluxo do tempo. Eis tudo, ou quase. Certamente passaram coisas despercebidas, e agora percebi que me esqueci de comentar o texto em si, que como alguns já devem saber é algo inteiramente inusitado. Joyce era excelente poliglota, de modo que seu estilo é babélico: plural e confuso. Ele sabia dizer tudo, em todas as línguas, de todas as épocas, com feito, disse coisas demais. Desafiou não só a semântica e a sintaxe, mas também a morfologia, que foi por ele genialmente violada. Todos os estilos e modos servem ao romancista. Na cena da maternidade, por exemplo, um estudante começa falando no inglês medieval de Chaucer, outro responde no inglês barroco de Shakespeare e Ben Johnson, segue-se a linguagem bíblica de Milton, depois as rimas de Pope, a narrativa sóbria de Defoe, a elegância cínica de Swift, o sentimentalismo de Fielding, a sonoridade oriental de De Quincey e a verbosidade cômica de Dickens, até descambar nas gírias grosseiras que prenunciavam os beatniks. Cumpre aqui avisar que o livro é bastante obsceno! Em comparação, as convulsões eróticas de D. H. Lawrence parecem pálido reflexo, faltando-lhe o humorismo cruelmente irônico de Joyce. Há ainda outros detalhes interessantes, porém irrelevantes (assim penso), cada capítulo corresponde a uma parte do corpo e não será difícil identificar qual. Cada um também é caracterizado por uma cor, conforme as significações místicas da escolástica concernentes às artes humanas: música, retórica, etc. Afinal, como se pode ver, Ulysses foi elaborado de acordo com um esquema de construção tão meticulosamente elaborado, que cabe perguntar: para que tudo isso? Não sei. Jamais decifrei tal charada. Pelo menos não por inteiro. Nem sei se quero, nem se vale a pena... Só sei que apesar da grande influência que Joyce exerceu, a sua obra continua única e inimitável. Pode ser considerada como sintoma de decomposição, literária e intelectual. Mas a literatura, ou o mesmo romance não acabou e nem vai acabar por causa disso – apenas ampliou-lhes o território. Ulysses é, de fato, um mistério e um desafio, mas por isso não pode dizer: “não será lido”, pois não se sabe se jamais foi lido e tampouco decifrado.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Palavras cantadas...


Eu quero a sorte de um amor tranqüilo


Com sabor de fruta mordida


Nós na batida, no embalo da rede


Matando a sede na saliva


Ser teu pão, ser tua comida


Todo amor que houver nessa vida


E algum trocado pra dar garantia


Que ser artista no nosso convívio


Pelo inferno e céu de todo dia


Pra poesia que a gente não vive


Transformar o tédio em melodia


Ser teu pão, ser tua comida


Todo amor que houver nessa vida


E algum veneno antimonotonia


E se eu achar a tua fonte escondida


Te alcanço em cheio, o mel e a ferida


E o corpo inteiro como um furacão


Boca, nuca, mão e a tua mente não


Ser teu pão, ser tua comida


Todo amor que houver nessa vida


E algum remédio pra dar alegria




Feliz dia dos namorados

terça-feira, 10 de junho de 2008

Amour sans fin...

Héloise era órfã, e não se sabe ao certo quem seriam seus pais; era sobrinha de Fulbert, padre e Deão da Catedral de Paris (ainda não era a Notre Dame, construída um século depois). O tio mandou-a para um convento, célebre pela escola e biblioteca. Quando soube que Héloise sabia conversar em latim com a mesma facilidade que em francês, e que estava estudando hebraico, Fulbert orgulhou-se da sobrinha e levou-a para morar em sua casa, nos fundos da catedral. Para servir-lhe de tutor em filosofia e outros estudos avançados, Fulbert procurou o ídolo e modelo de todos os estudiosos de Paris.
Seu nome era Pierre Abélard, nascera na Bretanha por volta de 1079, primogênito de um rico agricultor. Brilhante na escola, Abélard, ainda jovem, ficou entusiasmado quando ouviu falar de homens chamados escolásticos, uma classe de intelectuais que compartilhavam de conhecimentos, terminologia técnica e experiências interiores comuns, que propiciavam um diálogo filosófico fértil e especializado entre a razão e as Sagradas Escrituras. Sua busca por estes homens logo o levou para Paris, e para à escola catedral, onde Guilherme de Champeaux foi seu mestre. Anos depois, Abélard organizou sua própria escola, primeiro em Melun, depois em Mont-Geneniève, nos arredores de Paris. Ali, sua eloqüência, seu brilho e sua alegria intelectual atraíram mais alunos do ele poderia abrigar. Sua fama espalhara-se pela França, foi quando Fulbert o convidou para ser tutor de Héloise.
Era 1117, Abélard estava com 38 anos e Héloise com 17. Abélard admite que o primeiro sentimento que teve por ela foi de atração física, mas isso logo se transformou, graças à delicadeza da jovem, naquilo que ele descreveu como “uma ternura que superava em suavidade qualquer bálsamo”. Ela parece ter-se entregue a ele com confiança quase infantil; logo engravidou.
Abélard enviou-a para casa de sua irmã, na Bretanha, e acalmou Fulbert oferecendo-se para casar com Héloise, desde que o padre mantivesse a união em segredo, pois ele próprio tinha pretensões ao sacerdócio. De sua parte, Héloise recusou-se a casar, pois não queria que Abélard vivesse sua vocação de forma indigna. Se acreditarmos na autobiografia de Abélard, Historia Calamitatum, Héloise disse-lhe que “era muito mais doce ser chamada de ‘amante’ do que ‘esposa’, aliás, isso a honraria muito mais”. Mas, finalmente, Héloise consentiu e, junto com Abélard e Fulbert, concordou em manter o segredo. Logo depois, Fulbert revelou a união ilegal, no intuito de atenuar um escândalo mais grave. Héloise o desmentiu; Fulbert espancou a sobrinha, e ela abortou; Abélard mandou-a para um convento e pediu-lhe que aceitasse as vestes, mas não os votos de freira. Fulbert contratou rufiões para castrar Abélard. A emasculação não o desgraçou imediatamente, embora o desqualificasse para o sacerdócio; toda Paris, inclusive o clero, solidarizou-se com ele; os estudantes acorreram para confortá-lo – mas era tarde, Abélard estava arruinado. Pediu a Héloise que tomasse o hábito e os votos, e ele próprio professou votos solenes como monge. Com permissão para ensinar novamente, ele e seus alunos construíram perto de Troyes uma ermida para servir de escola e oratório. Aos poucos, recuperando a saúde e a coragem, Abélard dedicou-se a escrever alguns dos mais importantes livros da filosofia e poesia medieval. Na sua imponente obra Dialectica, ele formulou as regras de raciocínio, preparando-as para o renascimento da mente da Europa Ocidental. Em Diálogo entre um filósofo, um judeu e um cristão, permitiu que cada um desses três homens expusesse a fragilidade das doutrinas dos outros dois. Em Sic et Non (Sim e Não), Abélard formulou 157 perguntas às quais apresentou um argumento para resposta afirmativa e outro para resposta negativa. Em Theologia Christiana, rejeitou como sendo irracional a alegação de que só um cristão poderia se salvar; argumentou que Deus dá amor a todas as pessoas. Os hereges deveriam ser reprimidos pela razão, e não pela força.
Devido a essa variedade de idéias arrojadas, em 1140, Abélard foi indiciado pela Inquisição que, no Concílio de Sens, estabeleceu o inquisidor São Bernard de Clairvaux como promotor e relator do processo. Bernard era amigo de infância de Abélard e, após estudar sua filosofia, considerou-o muito ousado e heterodoxo, mas não perigoso, e por fim pediu que ele fosse punido apenas com o silêncio obsequioso. Abélard desesperou-se e, embora nessa época debilitado pela idade e aflições, partiu para Roma para expor seu caso ao Papa. Chegou ao mosteiro de Cluny, na Borgonha, e foi bem recebido pelo piedoso abade, Pedro, o Venerável. Ali, porém, ficou sabendo que Inocêncio III já havia acatado o veredicto do Concilio de Sens e lhe impusera o silêncio e confinamento monástico. Exausto física e espiritualmente, Abélard retirou-se para a obscuridade das celas e dos rituais de Cluny. Edificou os companheiros monges com a sua piedade, o seu silêncio e as orações. Escreveu a Héloise – a quem jamais voltou a ver - e reafirmou seu amor por ela e pela Igreja. Compôs, talvez para os olhos de Héloise, alguns dos mais belos poemas da literatura universal. Pouco depois adoeceu e o bondoso abade o enviou para o hospital do mosteiro de São Marcelo, perto de Châlons. Ali, aos 21 de abril de 1142, Abélard morreu com 63 anos. Foi enterrado na capela do mosteiro, mas Héloise, então abadessa do Paracleto, lembrou a Pedro, o Venerável, que Abelard pédira para ser enterrado em sua abadia. O bom abade Pedro levou ele próprio o corpo até Héloise, tentou consolá-la dizendo que ele era o maior gênio da época, e deixou-lhe uma carta cheia de ternura e cristã:

Assim, cara e venerável irmã em Cristo, aquele a quem, depois do vínculo da carne, vos uniste por um liame ainda melhor e mais forte, ou seja, o do amor divino,... o Senhor agora o recebe em vosso lugar, ou como a vossa própria pessoa, e o aquece em Seu seio; e o conserva para devolvê-lo a vós, pela Sua graça, no dia de sua vinda.

Héloise uniu-se ao amado em 1164, tendo vivido o mesmo número de anos e tido quase a mesma fama intelectual. Foi enterrada ao lado de Abélard nos jardins da abadia do Paracleto. Esse oratório foi destruído na Revolução Francesa, os túmulos violados e talvez confundidos. Em 1817, o que se julgava serem os restos mortais de Abélard e Héloise foi transferido para o cemitério Père Lachaise, em Paris. Ali, ainda hoje, em domingos de verão, podemos ver homens e mulheres apaixonados - às vezes juntos, às vezes solitários - adornando o túmulo com flores.

quinta-feira, 5 de junho de 2008


A literatura, ao curar os males da alma humana, pode oferecer-nos uma nova visão e um novo vocabulário de experiências, ou seja, um quadro verdadeiro da liberdade. Com isso, renovando a nossa noção de perspectiva, talvez nos lembremos de que a arte também vive em uma região onde toda a iniciativa humana fracassa.




Iris Murdoch

A Filósofa das Despedidas


Iris Murdoch foi mais uma das grandes contribuições que a Irlanda deu à literatura universal – ao lado de Oscar Wilde, Bernard Shaw e James Joyce. Como a maioria dos seus compatriotas, ela escreveu em inglês, enriquecendo assim uma língua já tão saturada de arte e poesia. Mas antes de ser artista e poeta, Iris quis ser filósofa, pois desde a adolescência tinha o propósito filosófico de, esteticamente, desafiar Platão, e assim anular o anátema que ele havia lançado sobre todos os poetas desde Homero. No entanto, apesar de sua exuberância intelectual e do forte ímpeto narrativo, acabou fracassando. Em tal empreitada, Iris Murdoch havia estabelecido para si os modelos mais elevados: Dante, Shakespeare, Tolstoi, Jane Austen, Dickens e Henry James. Diante de tais padrões, cumpre-nos perguntar, quantos escritores sobreviveriam? Ela sobreviveu, mas mesmo assim fracassou, pois se nem Homero conseguiu arranhar o incomensurável poder argumentativo de Platão, quem mais poderia fazê-lo? Todavia, que ninguém a subestime, pois qualquer escritor, poeta ou filósofo que se propõe a encarar tamanho desafio sofre, necessariamente, uma derrota honrosa. E o espólio desta luta não me deixa mentir: Iris escreveu 26 romances magníficos, dentre os quais ninguém sabe dizer qual o melhor. Eu só tive a sorte de ler três – O Sonho de Bruno, O Príncipe Negro, e O Mar, o Mar -, e foi o bastante para vislumbrar o seu gênio. Em todos os seus textos, Iris incansavelmente demonstra que só a literatura pode nos permitir uma percepção de todos os aspectos da realidade, que não seríamos capazes de ver, se não nos fossem por ela indicados. O grande paradoxo disso tudo é que a sua narrativa, quase romanesca ou fantástica, depende de magia, de intrusões góticas e paixões absurdas que nem sempre terminam bem. Iris Murdoch sofreu muito por amor, de modo que sempre fez seus personagens sofrerem o mesmo. Sua obra é toda povoada por jovens ardentes, violentos, ladinos e obsessivos, que perseguem ídolos narcisistas, dotados de muito charme, mas pouco controle da realidade, e que são céticos hesitantes. Nela há também adultos, freqüentemente, frustrados e raivosos, que se apaixonam subitamente. E há os magos de Murdoch, judeus carismáticos, os “deuses estranhos”, conforme ela própria, certa vez, os definiu. Nenhum desses tipos permite grandes processos de individuação, em termos de personagem, mas encaixam-se bem nas profundíssimas reflexões que Iris faz acerca do erotismo, da vivência amor e, sobretudo, da triste vivência do final do erotismo e do amor. Por isso ela é a grande filósofa das despedidas. E como Platão, Iris consegue filosofar com poesia. Seu poema “Carta do Hades” traz um dos melhores momentos da literatura moderna em que é invocado final de uma paixão. Sempre que leio lembro-me de Swann, em Proust, exclamando: “E pensar que sofri tanto por uma mulher que comigo não condizia, que sequer era meu tipo!”. Lembro também de Jack Burden, no romance de Robert Penn, Todos os Homens do Rei, que despede-se, em devaneio, da ex-esposa: “Adeus, Lois, e perdôo-te por tudo que te fiz!” (Chico Buarque usou essa frase numa de suas lindas canções). Mas nada se compara mesmo a obra de Iris Murdoch, que num dos seus primeiros romances diz: “Deixar de gostar de alguém é uma das grandes experiências humanas; a gente parece ver o mundo com novos olhos”.

Apagar de uma memória


Baseado em dois livros de John Bailey (A Memoir e Elegy for Iris), o filme Iris - dirigido por Richard Eyre e interpretado por Kate Winslet (na fase jovem) e Judi Dench (nos derradeiros dias) - acompanha a agonia de Iris Murdoch a partir da descoberta acidental do mal de Alzheimer, pouco antes de ela concluir o último romance em 1995. Paralelamente, revela o início de sua carreira e do relacionamento com o fiel companheiro, interpretado por Hugh Boneville (quando jovem) e Jim Broadbent (na idade avançada, interpretação que mereceu o Oscar de ator coadjuvante). Mais do que uma cinebiografia reverente, esta é a história de um relacionamento e de como uma pessoa que vivia da memória e das palavras se viu incapacitada de lembrar e escrever.
O defeito de Iris que mais salta aos olhos talvez seja o de carregar nas tintas melodramáticas. Assistindo-o, sabe-se que, na fase mais adiantada da doença, ela perdia-se com facilidade nas ruas. Mas não fica claro como suas idéias transformaram o comportamento de uma geração. Mesmo assim, veja.