segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Palavras cantadas...


Nada do que foi será

De novo do jeito que já foi um dia,

Tudo passa, tudo sempre passará.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Oremus...


Sonhei que entrava numa catedral - que jamais vi - e encontrava o escritor Jorge Luis Borges, sozinho, sentado num dos bancos proximo ao altar. Estava de olhos fechados e parecia ouvir um belíssimo canto litúrgico, que eu conheço bem (Stabat Mater), mas que vinha não sei de onde. Não tive coragem de me aproximar, fiquei olhando-o de longe até que o canto acabou e ele saiu por uma porta lateral. Quando acordei, fui imidiatamente procurar o cd que tem esse canto. Não encontrei. Procuro mais tarde. Mesmo assim, o sonho não me saiu da mémoria, e ainda há pouco, lembrei que em se trantando de religião, ou mesmo fé, Borges era bastante reticente. Cresceu como cristão-católico, depois declarou-se ateu, depois agnóstico, depois não disse mais nada. Fascinava-se com a trovejante poesia do Alcorão, citava-a e recitava. Estudava cabala e teologia. Mesmo assim ninguém sabia se acretidava ou não.

No entanto ele rezava. Sei que sua poesia era uma forma de prece. As vezes até escrevia evangelhos apócrifos:

Felizes os que amam;
felizes os que podem prescindir do amor (…)
Felizes os felizes!

Desde que acordei, tenho pensado nestas preces poéticas, e tenho murmurado baixinho, como quem reza, a mais bela dentre elas:

Dai-me, Senhor, coragem e alegria
Para escalar o cume deste dia.

Era só isso que eu tinha a dizer nesta manhã de quinta-feira. Obrigado por sua atenção. Agora vou ali tentar reunir toda a coragem e alegria que puder, porque este dia tem um cume alto, escarpado e cheio de perigos, e ninguém pode escalá-lo por mim.

Anunciação


Virgem! filha minha

De onde vens assim

Tão suja de terra

Cheirando a jasmim

A saia com mancha

De flor carmesim

E os brincos da orelha

Fazendo tlintlin?

Minha mãe querida

Venho do jardim

Onde a olhar o céu

Fui, adormeci.

Quando despertei

Cheirava a jasmim

Que um anjo esfolhava

Por cima de mim...


Vinicius de Moraes

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Solilóquios...


"Disseram-me que as estrelas aparecem com trinta anos de atraso, por isso olhar pro céu é como olhar o passado... Mas nem todas. Em algumas, a luz partiu há milhares de anos. Outras, como o Sol, há 8 minutos. Se ele explodisse – cogitou Sylvia Plath - a gente teria tempo apenas para fumar um cigarro... ou comer um Chicabon!..."

"Um livro é um amigo que faz o que nenhum outro amigo faz: cala-se quando queremos pensar."


Flaubert

A Perfeição que destrói...


Hoje, 12 de dezembro, comemora-se o 186 º aniversário do escritor que era o melhor dos melhores. Gustave Flaubert tornou-se sinônimo do esplendor estético da literatura universal porque sintetizou em si todos os movimentos e estilos, e realizou a perfeição estilística. Inaugurou o realismo com Madame Bovary, restaurou o romantismo com Salambô, e em todos os seus escritos, mesmo nos menores, fez questão de ser clássico. Nunca, desde então, nenhum homem influenciou mais a literatura, nem escreveu melhor.
Flaubert era filho e neto de médico e foi, como Dostoievski, criado num ambiente de médicos. Gostava de diagnosticar e receitar, e fascinava-se até a morbidez com o anormal. Seus personagens são pacientes, cobaias – e como bom médico ele termina mandando todos para o outro mundo. Nasceu em Rouen em 1821, e excetuadas três excussões a Bretanha e ao Oriente Médio, permaneceu nesta cidade a vida toda, dedicando a sua mãe um edipiano que o fazia fugir ao casamento. Quando jovem era forte, atlético, vivaz e bastante promíscuo. Mas a sífilis veio juntamente com a epilepsia que derramou-lhe na alma negra melancolia. A consciência destas doenças tornou-o tímido e recluso, embora terrivelmente orgulhoso. Sua extrema sensibilidade fez-se irritadiça; seus amigos só lidavam com ele com grande diplomacia, mas a maior parte o deixou entregue ao azedume e a solidão. Por duas vezes apaixonou-se sem que nada disso resultasse. Enclausurou-se num monasticismo literário, fez-se um solteirão da arte.
Entretanto, muito antes disso, já havia decido ser escritor. E começou cedo, com quinze anos já tinha três romances: A Bela Andaluza, O Baile de Máscaras e O Marido Prudente. Por sorte não os publicou!... “Ah, que prudência tive eu não imprimindo aquilo! Como me envergonharia agora!”... Ele se propusera anos de prática; dia a dia, durante meses, fechava-se no quarto para obstinadamente buscar o estilo mais belo, único, ou seja, a perfeição. E assim trabalhou no silêncio e na solidão; às vezes agarrado a uma página pela semana toda, nunca satisfeito com o que realizava, atordoando-se por casa de um sinônimo adequado, procurando, investigando sempre. Mal comparando, ele era como um desses carpinteiros que derrubam uma floresta para fazer uma gaveta. Com efeito, nessa idade, já havia descoberto a receita da prosa perfeita: “Primeiro, seguir de perto as metáforas; depois não entrar em detalhes alheios ao assunto; trabalhar em linha reta.Condensar o pensamento, remendos de púrpura de nada valem. Criar um tecido fino com a seda e forte como a malha. Nunca repetir na mesma página um adjetivo, nem na mesma frase uma preposição. E, por fim, a frase deve permitir a leitura em voz alta. A frase mal escrita não suporta este teste, pois só está correta quando se harmoniza com todas as necessidades da respiração.
A perfeição artística, como se pode ver, não lhe veio naturalmente, nem pela inspiração. Foi comprada, e custou caro. A observação de Flaubert tinha sutileza de Sthendal, a descrição tinha abrangência de Balzac; só que Balzac primeiro narra e depois descreve, Flaubert descreve por meio da narração. Cada personagem sua é a um tempo comum e individual, revelando a humanidade inteira através duma única alma. Tomados em conjunto formam um tratado completo da psicologia humana. Nada pode ser mais objetivo, o autor fala do “bem” do “mal” a neutralidade dum coveiro. Escreveu alguns livros e acabou fixando um parâmetro, o maior.
Ironicamente, por tudo isso, o final da sua vida foi amargo. O esforço sobre-humano das composições agravou-lhe a epilepsia, os amigos escritores evitavam-no porque temiam seu julgamento, os parentes morreram. A velhice veio encontrá-lo só, triste, esgotado. “Gostas demais da literatura; isso irá te matar” – foi como a escritora George Sand o advertiu. Ela o sabia, mas não se importava; por que não ser destruído por uma sublime devoção? Flaubert pagou voluntariamente com o preço do seu sangue a grandeza conseguida no céu literário do ocidente. Um sobrinho e também escritor, Guy de Maupassant, disse que “ele deu, desde novo, toda a sua vida às letras e nunca pediu devolução. Gastou sua existência nessa imoderada paixão, passando noites de insônia, caindo de fadiga depois de horas de amor violento, e recomeçando de novo, cada manhã a dar tudo de si à sua amante. Finalmente, um dia, caiu fulminado sobre a escrivaninha, assassinado por ela, pela literatura: assassinado como o são todas as almas grandes – consumido pela paixão que nelas arde.”
Que estas palavras sejam o ponto final.

Da série: correspondência secreta!



... para alcançar a forma, estude os clássicos dia e noite. evite palavras novas, obsoletas ou sesquipedais (palavras que medem um pé e meio). Se o produto sobreviver a tudo isso, esconda-no por dez anos. se ainda assim o agradar, publique-no, mas lembre-se de que ele pode envergonhá-lo na maturidade. Se escrever dramas, obedeça as três unidades: ação, tempo, lugar. Experiemente a vida (mesmo no que há de mais sórdido) e depois estude filosofia, pois sem experiência, sem estudo e sem compreensão um estilo perfeito é um vaso vazio, fragil demais para o nosso uso.


Trecho de uma carta (1862) de Gustave Flaubert
para seu sobrinho Guy de Maupassant.

Ensaio sobre a Infidelidade


A leitura de Madame Bovary me deixou várias e fortes impressões, três delas, porém, jamais esqueci. Primeiro, o texto é de fato perfeito; segundo, sua perfeição é tediosa; e terceiro, a despeito das impressões anteriores, nunca mais pude encarar o amor com a mesma ingenuidade. Por que? Bem, leia!... Se, no amor, você já passou pela experiência de trair ou ser traído, leia.
Madame Bovary tornou Flaubert, num momento, famoso e infame. Ele foi levado aos tribunais sob a acusação de “cínica imoralidade”. Contudo, satisfazer o sensualismo do leitor foi coisa que jamais lhe passou pela cabeça, não fora para isso que dedicara seis anos de trabalho àquele livro. Nele apenas descreveu a infidelidade como teria descrito a varíola, desapaixonadamente e sem ênfase. O pasmo não passava de uma reação acidental a uma análise crua e aguda nunca dantes realizada acerca da traição.
O triunfo de Madame Bovary fez mal a Flaubert, porque levou o público a ver-se no espelho; quando esse público percebeu que Flaubert interessava-se mais pela realidade do que pelo entretenimento erótico, abandonou-o – deixando-o entregue aos que ainda eram capazes de suportar a visão de si mesmo.
Em cada detalhe Flaubert vai-nos recriando em seu romance, toda a nossa humanidade está lá. O primeiro tipo, como já esperávamos, é um médico de aldeia, Charles Bovary, imensamente mais real que o virtuoso monstro de Balzac em “O Médico do Interior”; e mais real porque mais medíocre; nada se parece tanto com a vida como a mediocridade. Charles Bovary estabelece-se numa aldeia em que o único rival era o boticário Homais, sujeito manhoso que “curava” ilegalmente e matava menos que Bovary. O médico se queixa; limita-se a exercer sua profissão com diligência só igual a sua incompetência. Vive calmamente e tem a felicidade de não ter história, até que se casa com uma mulher bonita, Ema Bovary.
Ela é o mais complexo e bem acabado retrato da inconstância, da insatisfação e da fraqueza humana. Devoradora de livros românticos e melosos (o equivalente das telenovelas de hoje), Ema atribui e espera do pobre marido as qualidades heróicas e sentimentais que vê nos romances preferidos. Mas, aí, até um Don Juan, é muitas vezes um aborrecimento para sua mulher: depois dum ano ou dois ela conhece todas as idéias do esposo, ouvi-o falar demais, abusou-se dele, boceja antes suas aspirações sem ambição. Pior para Charles, pois do ponto de vista duma mulher a ambição é a maior virtude de um homem. Ele, porém, está contente sendo o que é; cai na rotina em tudo, seja trabalho ou sexo. É quando Flaubert nos diz:

“Suas expansões tornam-se regulares; possui a esposa em dias fixos. Ela era apenas mais um hábito na sua lista de hábitos.”

Ema Bovary sente-se inquieta, arrependida, como poderá suportar aquela vida. Decide então ter um filho, mas ao contrário do que esperava, isso só lhe faz aumentar o tédio. Logo a criança é desprezada. Ema torna-se pálida, com palpitações. Charles receita-lhe valeriana e banhos canforados. Ela quer algo mais. É quando surge Rodolfo, um forasteiro, que diz a Ema o que há um ano Charles esqueceu-se de dizer – que ela é formosa e encantadora. Rodolfo é um cafajeste charmoso, que a seduz com silogismos, aliás supérfluos. Raramente a arte foi tão feliz ao retratar a vulgaridade de uma relação de interesses baratos. Durante meses, Ema e Rodolfo encontram-se secretamente – e tanto amor e paixão ela despejou-lhe em cima, que ele depressa sentiu-se encharcado. Quanto mais ela redobrava de ternura, menos Rodolfo escondia sua indiferença. Ema então propõe uma fuga, ele manda-lhe um delicado bilhetinho e some. Desolada, Madame Bovary procura consolo na religião.
Reza até que um depois surge Leon, um leão de Paris, que lhe conta as glórias da cidade grande de onde acaba de chegar escapando de agiotas. Leon faz tudo na cama, dizendo sempre que “em Paris é assim”. Ema afunda num torvelinho de mentiras e de dívidas para manter esse luxo. Derrama sobre Leon a sua beleza e seus favores; mas novamente constata que os homens destruidores de lares não são tão bons amantes. Leon cansa-se de Ema e Ema de Leon...

“E de novo ela encontra no adultério todas as chatices do casamento”.

Esta é a idéia central do livro, e mais profunda de Flaubert. Por fim, Madame Bovary suplica-lhe que a auxilie no pagamento das dívidas que contraiu para custear a traição; Leon dá no pé e Ema suicida-se. Mas nos últimos momentos abraça o marido e exclama:

“Tu és bom, tu!”...


Eis a tragédia da bondade sem malícia e do amor que morre quando é retribuído demais. Charles Bovary nada sabe das aventuras da esposa; ama-a depois de morta ainda mais do que antes. Reúne suas coisinhas para beijá-las e entesourá-las; entre elas encontra as cartas de Rodolfo e alguns retratos. O choque e a decepção o arrebentam. Seu criado o encontra morto num banco de jardim.
Este desfecho é o único defeito de um livro que estava destinado a banir da literatura e da vida o irreal. Mesmo assim, nunca a infidelidade foi vista de tão perto.

Por falar nisso...


Esta cena do filme "Pecados Íntimos", em que Brad Adamson pergunta a Sarah Pierce: “Do you feel bad about this?”, ela responde: “No, I don’t” e ele replica: “I do. I feel really bad.”, fez-me, imediatamente, recordar Rodolfo e Emma Bovary. O desenvolvimento do filme veio confirmar a impressão de haver um paralelo com a Madame Bovary, de Gustave Flaubert:

“Não sabe que há almas que vivem em contínuo tormento? Necessitam alternadamente de sonho e de acção, das paixões mais puras e dos prazeres mais furiosos, e por isso se lançam em toda a espécie de fantasias, de loucuras.Emma olhou-o como quem contempla um viajante que passou por países extraordinários, e disse:

- A nós, pobres mulheres, nem mesmo essa distracção é concedida!

- Triste distracção, pois nela não se encontra a felicidade.

- Mas é coisa que se encontre alguma vez? – perguntou ela.

- Sim, encontra-se um dia –, respondeu ele.(…)

- Encontra-se um dia – repetiu Rodolfo -, um dia, subitamente, e quando já se começava a desesperar. Então entreabrem-se horizontes, e é como uma voz que exclama: «Ei-lo!» Sentimos necessidade de fazer a essa pessoa confidências da nossa vida, de lhe dar tudo, de lhe sacrificar tudo! Não são necessárias explicações: adivinha-se que está ali. Encontrámo-la já em sonhos. (E olhava-a.) enfim, está ali, o tesouro que tanto procurámos, ali, diante de nós; brilha, resplandece. Mas há ainda um resto de dúvida, porque não ousamos acreditar…”

Não há maneira de fugir, Flaubert confessou o que nós, homens ou mulheres, pensamos em segredo: Emma Bovary c’est moi.

Palavras cantadas...


"De todas as maneiras
Que há de amar
Nós já nos amamos
Com todas as palavras feitas pra sangrar
Já nos cortamos
Agora já passa da hora
Tá lindo lá fora
Larga a minha mão
Solta as unhas do meu coração
Que ele está apressado..."
Chico Buarque