terça-feira, 11 de dezembro de 2007

A Perfeição que destrói...


Hoje, 12 de dezembro, comemora-se o 186 º aniversário do escritor que era o melhor dos melhores. Gustave Flaubert tornou-se sinônimo do esplendor estético da literatura universal porque sintetizou em si todos os movimentos e estilos, e realizou a perfeição estilística. Inaugurou o realismo com Madame Bovary, restaurou o romantismo com Salambô, e em todos os seus escritos, mesmo nos menores, fez questão de ser clássico. Nunca, desde então, nenhum homem influenciou mais a literatura, nem escreveu melhor.
Flaubert era filho e neto de médico e foi, como Dostoievski, criado num ambiente de médicos. Gostava de diagnosticar e receitar, e fascinava-se até a morbidez com o anormal. Seus personagens são pacientes, cobaias – e como bom médico ele termina mandando todos para o outro mundo. Nasceu em Rouen em 1821, e excetuadas três excussões a Bretanha e ao Oriente Médio, permaneceu nesta cidade a vida toda, dedicando a sua mãe um edipiano que o fazia fugir ao casamento. Quando jovem era forte, atlético, vivaz e bastante promíscuo. Mas a sífilis veio juntamente com a epilepsia que derramou-lhe na alma negra melancolia. A consciência destas doenças tornou-o tímido e recluso, embora terrivelmente orgulhoso. Sua extrema sensibilidade fez-se irritadiça; seus amigos só lidavam com ele com grande diplomacia, mas a maior parte o deixou entregue ao azedume e a solidão. Por duas vezes apaixonou-se sem que nada disso resultasse. Enclausurou-se num monasticismo literário, fez-se um solteirão da arte.
Entretanto, muito antes disso, já havia decido ser escritor. E começou cedo, com quinze anos já tinha três romances: A Bela Andaluza, O Baile de Máscaras e O Marido Prudente. Por sorte não os publicou!... “Ah, que prudência tive eu não imprimindo aquilo! Como me envergonharia agora!”... Ele se propusera anos de prática; dia a dia, durante meses, fechava-se no quarto para obstinadamente buscar o estilo mais belo, único, ou seja, a perfeição. E assim trabalhou no silêncio e na solidão; às vezes agarrado a uma página pela semana toda, nunca satisfeito com o que realizava, atordoando-se por casa de um sinônimo adequado, procurando, investigando sempre. Mal comparando, ele era como um desses carpinteiros que derrubam uma floresta para fazer uma gaveta. Com efeito, nessa idade, já havia descoberto a receita da prosa perfeita: “Primeiro, seguir de perto as metáforas; depois não entrar em detalhes alheios ao assunto; trabalhar em linha reta.Condensar o pensamento, remendos de púrpura de nada valem. Criar um tecido fino com a seda e forte como a malha. Nunca repetir na mesma página um adjetivo, nem na mesma frase uma preposição. E, por fim, a frase deve permitir a leitura em voz alta. A frase mal escrita não suporta este teste, pois só está correta quando se harmoniza com todas as necessidades da respiração.
A perfeição artística, como se pode ver, não lhe veio naturalmente, nem pela inspiração. Foi comprada, e custou caro. A observação de Flaubert tinha sutileza de Sthendal, a descrição tinha abrangência de Balzac; só que Balzac primeiro narra e depois descreve, Flaubert descreve por meio da narração. Cada personagem sua é a um tempo comum e individual, revelando a humanidade inteira através duma única alma. Tomados em conjunto formam um tratado completo da psicologia humana. Nada pode ser mais objetivo, o autor fala do “bem” do “mal” a neutralidade dum coveiro. Escreveu alguns livros e acabou fixando um parâmetro, o maior.
Ironicamente, por tudo isso, o final da sua vida foi amargo. O esforço sobre-humano das composições agravou-lhe a epilepsia, os amigos escritores evitavam-no porque temiam seu julgamento, os parentes morreram. A velhice veio encontrá-lo só, triste, esgotado. “Gostas demais da literatura; isso irá te matar” – foi como a escritora George Sand o advertiu. Ela o sabia, mas não se importava; por que não ser destruído por uma sublime devoção? Flaubert pagou voluntariamente com o preço do seu sangue a grandeza conseguida no céu literário do ocidente. Um sobrinho e também escritor, Guy de Maupassant, disse que “ele deu, desde novo, toda a sua vida às letras e nunca pediu devolução. Gastou sua existência nessa imoderada paixão, passando noites de insônia, caindo de fadiga depois de horas de amor violento, e recomeçando de novo, cada manhã a dar tudo de si à sua amante. Finalmente, um dia, caiu fulminado sobre a escrivaninha, assassinado por ela, pela literatura: assassinado como o são todas as almas grandes – consumido pela paixão que nelas arde.”
Que estas palavras sejam o ponto final.

3 comentários:

Anônimo disse...

Maravilhosa esta alma apaixonada!Nada como entregar-se àquilo que se ama!

Anônimo disse...

Fui criada na escola humanística e, portanto, li todos os livros de Flaubert, mas nunca a sua biografia. Vc me acendeu um fogo interior, a necessidade de conhecer a vida dos grandes escritores.
Maravilhoso texto. Se tiver tempo, releia o texto com atenção e corrija alguns pequenos erros de digitação (ex: ela o sabia,no lugar de ele o sabia, logo após a frase sobre George Sand; "com a seda" - não seria como?). Um texto deste quilate não merece ter um senão.

Anônimo disse...

Corrigindo: quis dizer que li todos os escritores franceses e russos. Papai era professor e me acostumou a ouvi-lo declamar em francês.