sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

A cena e o tema

Parado numa fila de cinema, Lou Reed viu um mendigo esbravejando com uma mulher. Assim que chegou mais perto, notou que o sem-teto não estava propriamente aborrecendo a senhora, e sim recitando aos brados O corvo, de Edgar Allan Poe. Quem está familiarizado com o engajamento de Lou Reed nas descrições veementes do comportamento humano sabia que ele acabaria transformando em letra de música a curiosa situação. E foi o que fez no The Raven (O Corvo), seu 23º álbum solo - desde que saiu da lendária banda Velvet Underground. A quem interessar possa, o disco dá mais uma prova de que Lou Reed, com certeza, é o melhor cronista que o rock já promoveu. Sua verve está afiadíssima. Sexo extremado, drogas e amores amargos integram o panorama musical de The Raven, um disco que deve ser apreciado – como o próprio autor já aconselhou em vezes anteriores – com fone de ouvido para ser mais bem entendido em sua plenitude, tanto em relação às letras contundentes quanto às melodias e harmonias de peso.

Além de Poe, Lou Reed é admirador confesso de Raymond Chandler e James Joyce, a quem faz referências em Blue Mask.

O grande escritor menor


O primeiro narrador norte-americano a obter ressonância européia foi Edgar Allan Poe (1809-1849). Ressonância tal e tanta que, na sua pátria, pensaram - e ainda pensam - ser excessiva. Poe viveu naquele período que antecede imediatamente os anos em que se deu o nascimento da grande tradição literária norte-americana: os anos que viram publicar as obras mais belas e significativas de Hawthorne, Melville e Whitman: respectivamente A Letra Escarlate (1850), Moby Dick (1851), Folhas da Relva (1855). É assim que, mesmo cronologicamente, Poe surge como um estranho à tradição literária norte-americana, pelo menos no sentido em que temos vindo a utilizar o termo: o romantismo exacerba-se e assume um caráter de sombria violência no gênero em que Poe amplamente dominou, o da short-story, ou estória curta, ou do conto mesmo. Entretanto, se os norte-americanos negaram a Poe lugar eminente no seu Parnaso, decidiram com não pouca arrogância atribuir-lhe, como se de uma compensação se tratasse, um dos mais ilustres, diga-se, no seu martirológio. O sinistro, desesperado, inglório martirológio do alcoolismo. Poe é, na verdade, o mais célebre e, muito possivelmente, o mais ilustre dos poetas vítima do álcool. Num dos seus mais belos e intensos contos, O Homem da Multidão (1840), o narrador acompanha uma personagem até à porta de uma taberna; mas não lhe chama “taberna”: chama-lhe “one of the huge suburban temples of Intemperance - one of the palaces of the fiend, Gin” (“um dos gigantescos templos suburbanos da Intemperança - um dos palácios do demônio Gin»). As palavras templo, palácio e demônio tornam facilmente compreensíveis qual deveria ser a parte assumida na vida do poeta pelo álcool: uma força simultaneamente odiada e adorada, contra a qual teve de se envolver numa luta sem resguardo e sem possibilidade de vitória, uma luta cansativa e esquálida, numa vida tão breve e infeliz.
Filho de atores circenses, Poe, muito cedo, viu desaparecer os pais, vitimados pela tuberculose. Em conseqüência, foi adotado por um tio rico, com quem conheceu um verdadeiro lar, sobretudo confortável. No entanto, os anos de miséria e a morte dos pais desenvolveram no jovem um espírito mórbido, que a sua natureza enfermiça só fez agravar.
Em 1827, ele abandonou a casa adotiva, vivendo por uns tempos um período de instabilidade emocional. Matriculou-se na Academia Militar de West Point, mas depressa se manifestou avesso à disciplina militar e foi expulso. Publicou ainda em 1827 o seu primeiro livro de poesia, Tamerlane e outros poemas. Em 1833 ganhou um prêmio instituído pelo jornal Philadelphia Saturday Visitor com seu conto “Manuscrito encontrado numa garrafa”. O diretor do jornal, vendo a situação de miséria e depressão em que Poe vivia, conseguiu-lhe um lugar de vice-diretor do Southern Literary Messenger, onde ficaria por pouco tempo, visto que devido à sua permanente morbidez, se tornaria num alcoólatra inveterado. No amor foi igualmente infeliz. Casou com uma prima chamada Virgínia, uma noiva-criança, com 13 anos apenas, que ele amava de verdade e junto de quem pareceu readquirir um pouco de confiança em si mesmo. Mas Virgínia morreu cedo, também vítima de tuberculose, e Poe, completamente arrasado, mergulhou num estado de desespero que o levou a procurar novas mulheres e a passar a maior parte do seu tempo embriagado. Ainda antes de os círculos literários dos EUA se terem decidido conceder um pouco de crédito artístico a Poe, este foi traduzido e apresentado aos leitores europeus por um dos maiores poetas e críticos de Oitocentos: Charles Baudelaire.
Baudelaire - como introdução a uma seleção de contos traduzidos - escreveu uma biografia do poeta americano: mas, em vez de lhe ressaltar a figura de artista, apresenta-o como se estivesse a descrever uma vida de santo; e, numa famosa página de diário, não hesitou confessar, com total franqueza, que, antes de adormecer dedicava a Poe as orações noturnas. É claro que a canonização literária de Poe levada a cabo por Baudelaire foi essencialmente prejudicial ao grande contista americano, pois, em vez de ajudar a compreender e apreciar melhor a sua arte sublime, distrai as atenções do essencial para o acessório.
Por outras palavras, as obras de Poe podem parecer pela sua extravagância (se o compararmos com os seus contemporâneos) o fruto corrompido de uma mente presa aos efeitos do álcool e, por isso, serem lidas, em chave desajustada, como testemunho de um mal, de uma doença. Tal leitura será sempre um modo superficial e mecânico do leitor abordar a arte de Poe, ainda que o método tenha sido recomendado por um crítico ilustre. Isto porque nunca do álcool nasceu poesia verdadeiramente grande. E, de qualquer modo, a poesia de Poe, a dos seus versos e da sua prosa narrativa, teve uma origem totalmente outra. E que ele revela no ensaio The Philosophy of Composition (A Filosofia da Composição,1846), que consiste numa receita pessoalíssima para escrever poesia. Aí, o autor toma posição clara contra todos aqueles que acreditam ser a poesia (e a arte em geral) o resultado de um estado de espírito excepcional, a que é usual chamar inspiração.
Poe escreveu cerca de cinqüenta poemas e setenta contos, um romance (Gordon Pym, 1838), um drama que ficou incompleto (Politian, publicado postumamente em 1923). Mas é opinião generalizada que a mais sólida razão para a sua justa glória literária se encontra nos contos que publicou, um gênero cuja evolução fortemente determinou. Não obstante, o poema “The Raven” (O Corvo, 1845), é considerado uma das obras primas da poesia universal.
Poe inventou uma humanidade à sua medida e, a partir dela, uma dor: e foi capaz de lhes dar consistência poética, ainda que essa humanidade e essa dor sejam profundamente diversas daquelas que os leitores alguma vez possam ter conhecido ou experimentado. Graças a Poe, o leitor moderno aprendeu a servir-se do terror como uma espécie de calmante. Não deixa de ter a sua lógica que nos EUA os thrillers (os romances negros) se possam comprar nas farmácias. E os repertórios de suspense, de suspensão angustiosa dos nervos, produzidos com tantos cuidados e sabedoria no laboratório de Edgar Allan Poe, são perfeitamente adequados a provocar uma boa sacudidela no sistema nervoso de qualquer um e a repô-lo em ordem. É importante recordar, a este propósito, que o thriller, afinal de contas, é um gênero ao qual o nome do poeta americano está irrefutavelmente ligado: a Poe deve ser reconhecida definitivamente a sua descoberta literária, se não a paternidade. E até de lamentar vivamente que a este gênero tão caracteristicamente norte-americano Poe só haja dedicado três narrativas O assassinato da Rua Morgue (1841), O Mistério de Marie Rogêt (1842) e A Carta Roubada (1845): é que, esgotado em breves páginas o retrato gostosíssimo do infalível Auguste Dupin, fica o eterno sabor amargo da nostalgia, o desejo imenso de o reencontrar, quando o leitor se defronta com os seus pálidos sucessores, de Philo Vance a Maigret, passando por Sherlock e Poirot.
Há quem diga que Poe, para ser mais do que um grande escritor menor, deveria ter ido um pouco mais longe na sua ânsia cognitva e procurado instituir uma relação entre as impressões da sensibilidade neurótica e a vida interior da consciência e alcançar o coração humano, com o peso da sua carne e a luz do seu espírito: mas Poe não poderia instituir esta relação pela simples razão de que a negava explicitamente ao não suspeitar sequer da sua existência: a isto chama-se ingenuidade.
Para instituir esta relação, e portanto para transportarem a sua arte para um plano mais responsável e adulto, mas certamente nunca esteticamente mais alto que o atingido por Poe, surgem, na idade moderna, dois outros escritores: um era Nathaniel Hawthorne, o sonhador, igualmente ingênuo; o outro era Franz Kafka, cujos sonhos eram pesadelos labirínticos.

Quase a mesma coisa!!!


Todas as vezes que leio alguma das muitas traduções, em português, de "The Raven" (O Corvo), fico me perguntando se, de fato, existe tradução?!... Confesso que sou um tanto cético em relação a isso. Veja bem, até onde entendo, traduzir pressupõe entender o sistema interno de uma língua, a estrutura de um texto dado nessa língua e construir um duplo do sistema textual que, submetido a uma certa discrição, possa produzir efeitos análogos no leitor, tanto no plano semântico quanto no sintático, quanto no plano estilístico, métrico, fono-simbólico, e quanto aos efeitos passionais para as quais tendia o texto fonte. Sendo que "submetido a uma certa discrição", significa que toda tradução apresenta margens de infidelidade em relação a um núcleo de suposta fidelidade, mas que a decisão acerca da posição do núcleo e a amplitude das margens depende dos objetivos que o tradutor se coloca. Isso fica claro nos textos a seguir, onde temos um mesmo autor e um mesmo corvo, que submetidos a dois tradutores (geniais, competentes e clássicos), geram dois corvos, parecidos sim, mas ligeiramente distintos. Ou seria o contrário? Bem, leiam:

O Corvo (original, by Edgar Allan Poe):

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore -
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of someone gently rapping, rapping at my chamber door."
'Tis some visitor, " I muttered, "tapping at my chamber door -
Only this and nothing more."

Ah, distinctly I remember it was in the bleak December;
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow - vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore -
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore -
Nameless here for evermore.
(...)
Open here i flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately Raven of the saintly days of yore;
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door -
Perched upon a bust of Pallas just a bove my chamber door -
Perched, and sat, and nothing more.

Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
"Though thy crest be shorn and shaven, thou,"
I said, "art sure no craven,
Ghastly grim and ancient Raven wandering from the Nightly shore -
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!"
Quoth the Raven, "Nevermore."

O Corvo (versão Machado de Assis):

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho
E disse estas palavras tais:
“É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais.”

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará jamais.
(...)
Abro a janela e, de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre Corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto
Movendo no ar as suas negras alas.
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.
Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo - o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: “Ó tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais:
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?”
E o Corvo disse: “Nunca mais.”

Agora... O Corvo (versão Fernando Pessoa):

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
“Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,Mas sem nome aqui jamais!
(...)
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu, “mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.”
Disse o corvo, “Nunca mais”.



Como dizer qual o melhor, ou a melhor? Na dúvida, leia no original.

A propósito de tradutores, traidores e tals ...

Porque existe várias formas de dizer, mas como vimos, embora diferentes, elas dizem quase a mesma coisa!...
Numa livraria próxima de você.

Um blog sobre um monte de coisas, mas não agora.

Estivemos fora do ar por motivos de... de quê, mesmo?

Ah, por falta de força!... Nos últimos dias do ano eu só queria ser forte, forte, muito forte, bem forte, com toda a força e toda a coragem para suportar. Forte pra não me deixar abater, forte para caminhar de cabeça erguida, forte para achar todas as respostas, forte para dar todas as explicações, forte para encontrar todas as justificativas, forte para ver todos os motivos. Forte para não chorar, forte para não capitular, forte para não esmorecer, forte para não cair, forte para não pirar, forte para não sofrer, forte muito forte para manter tudo sob controle, forte para segurar as pontas, forte para proteger quem precisa, forte para aceitar, forte para compreender, forte para ajudar, forte, muito forte. Forte para não duvidar, forte para não entristecer, forte para não desabar, forte para não rebentar, forte para não me revoltar, forte para não enraivecer, forte para não me descontrolar, forte para não sentir o que nem eu mesmo sei o que é. Mas então enfraqueci. Porque eu sempre soube (a gente sempre sabe) que dessa vez não dava. E estou eu aqui, temporariamente incapacitado de ser forte, precisando de descanso, ajuda, carinho, ternura, sono, evitando pensar. Porque é isso. Às vezes ser fraco é melhor que ser forte. Muito melhor. Porque é o que a gente é e é o que a gente precisa ser. No momento, estou quieto e seguro. Se eu sumir um pouco, como agora, não se assustem. Eu volto, sempre volto.