quinta-feira, 3 de julho de 2008


Vai, livro natimudo,
E diz a ela
Que um dia me cantou essa canção de Lawes:
Houvesse em nós
Mais canção, menos temas,
Então se acabariam minhas penas,
Meus defeitos sanados em poemas
Para fazê-la eterna em minha voz
Diz a ela que espalha
Tais tesouros no ar,
Sem querer nada mais além de dar
Vida ao momento,
Que eu lhes ordenaria: vivam,
Quais rosas, no âmbar mágico, a compor,
Rubribordadas de ouro, só
Uma substância e cor
Desafiando o tempo.
Diz a ela que vai
Com a canção nos lábios
Mas não canta a canção e ignora
Quem a fez, que talvez uma outra boca
Tão bela quanto a dela
Em novas eras há de ter aos pés
Os que a adoram agora,
Quando os nossos dois pós
Com o de Waller se deponham, mudos,
No olvido que refina a todos nós,
Até que a mutação apague tudo
Salvo a Beleza, a sós.


Ezra Pound

Antenadíssimo


Ezra Pound é, pessoalmente falando, uma das figuras literárias mais constrangedoras que surgiu desde Dostoievski. Digo isso porque sua alma foi tão luminosa quanto sombria. Nascido em 1885, era um menino rico, branco e protestante do Idaho, conhecido pelo domínio precoce de várias línguas. Começou a lecionar literatura muito cedo, aos 16 anos, mais foi despedido por ser um tipo muito “Quartier Latin”. Em breve buscou abrigo entre almas singulares, no estrangeiro. Aos 23 anos, engordando de fome numa dieta de batatas em Veneza, ele publicou seu primeiro livro, A Lume Spento, em italiano, uma coletânea de poemas que provocou uma amizade agressiva com Yeats, que assim o definia: “Uma natureza bruta e rude, ele está sempre ferindo o sentimento das pessoas, todavia é dotado de boa-vontade e de um gênio semântico incomensurável”. Boa-vontade: para dizer o mínimo! – entre 1909 e 1920, quando viveu em Londres e depois em Paris, ele sistematicamente promoveu as carreiras alheias (T. S. Eliot dedicou “A Terra Devastada” a Pound; foi Pound quem levantou o dinheiro necessário para Joyce terminar "Ulysses"; e ainda contribuiu para publicação de “A Consciência de Zeno” de Svevo, mesmo antipatizando com judeus). Sua generosidade nesse aspecto é uma questão sobre a qual até Hemingway, que não costuma celebrar a gentileza alheia, deu seu testemunho: “Até agora”, escreveu em 1925, “vemos que Pound, um poeta maior, dedicar um quinto de seu tempo à poesia, digamos. No restante do tempo ele tenta promover a fortuna tanto poética quanto material dos seus amigos”. E não era isso, eles os defendia quando eram atacados, colocava-os nas revistas e os tirava da cadeia. Emprestava dinheiro. Vendia seus quadros. Conseguia concertos para eles. Escrevia artigos a seu respeito. Apresentava os amigos a mulheres ricas. Fazia com que os editores lessem seus livros. Passava a noite em claro com eles, quando acreditavam que iam morrer, e servia de testemunha na hora do testamento. Adiantava despesas de hospital e os dissuadia de cometer suicídio. E, no final, alguns poucos evitam apunhalá-lo pelas costas na primeira oportunidade. Mesmo assim, ele conseguiu publicar panfletos regularmente, compor seus famosos Cantos (“o épico das viagens de uma inaudita mente poética”, como definiu João Cabral de Melo Neto, seu mais ilustre discípulo brasileiro). "Inaudita mente poética" é um gentil eufemismo, Pound era uma verdadeira antena semântica, cujo profundo domínio gramatical de diversos idomas chegava ser estarrecedor - daí ser tão grande poeta quanto tradutor. Nisto, porém, havia uma singela ironia: o escritor que foi um dos melhores tradutores, não apenas de um para quase todos os idiomas inverificáveis do extremo Oriente, mas do familiar território ocidental, seja qual fosse a sua compreensão da escrita, não era poeticamente fruível em algumas traduções. Ou seja, Pound era capaz de traduzir com maestria qualquer escritor de qualquer lugar, época ou língua. Mas poucos eram capazes de traduzi-lo!... Além de poesia e tradução, ele também tentou escultura e pintura com seriedade, mas sem sucesso. Entretanto foi o estudo do existencialismo ateu que se tornou seu interesse mais intenso, que veio juntamente com a nociva amizade e influência de Heidegger - depois do que ele desenvolveu noções filosóficas equivocadas que o levariam a ruína psíquica e moral: em 1939, sendo ainda muito italianófilo, mussolinista, assumiu publicamente uma postura anti-semita e começou a transmitir pelas rádios de Roma uma seqüência de discursos de cunho fascista que culminariam com seu indiciamento como traidor dos Estados Unidos; unidades do exército norte-americano que invadiram a Itália o capturaram em 1945. Por várias semanas, como uma besta feroz e raivosa, ele ficou preso numa jaula ao ar livre em Pisa. Meses depois, na véspera do seu julgamento por traição, ele foi declarado insano, como poderia ocorrer com qualquer outro poeta digno do nome; passou os doze anos seguintes isolado, evitado e quase esquecido no hospital Santa Elizabeth, no Distrito de Columbia. Enquanto estava lá publicou The Pisan Cantos, ganhou o prêmio Bollingen, um premio excessivamente censurado nos círculos endinheirados. Contudo, num dia chuvoso de 1958, Pound, então um velho de 72 anos, com sua barba antes exuberante tornando-se grisalha e seu rosto de santo demasiado pecador vincado por linhas que contavam uma história digna de consternação, compareceu perante a Suprema Corte e soube que era considerado “incuravelmente insano”. Incurável, mas inofensivo o bastante para viver livre. Imediatamente Pound anunciou: “Qualquer homem capaz de viver na América é insano!"... e se preparou para voltar a Itália. As fotografias, como esta feita por Cartier-Bresson, foram ainda tiradas poucos dias antes de sua partida de navio. Arrogante, zombeteiro, sombrio, seus olhos se fechando quando entoou os versos de uma canção sem sentido, balançando para frente e para trás, com se ainda estivesse na jaula em Pisa. Ou na jaula em que a própria vida se transformou.
Apesar de tudo isso, sua poesia é eterna e não apenas merece, mas deve ser lida.