terça-feira, 25 de setembro de 2007

Um luxo só...


O Som e a Fúria, Luz em Agosto e Palmeiras Selvagens... Três obra-primas luxuosamente editadas pela chiquérrima CosacNaify para os que queram experimentar Faulkner em grande estilo!...
E eu aqui, praticamente um flagelado da enchente.
Ô, mundo cão.

Vai encarar?


William Faulkner (essa coisa fofa na foto ao lado) aspirava criar um universo inalcançado, do qual apenas ele seria o único senhor e artífice; com efeito, o imaginário condado de “Yoknapatawpha” não era somente um retrato ficcional do condado de Lafayette, no Mississipi, sua terra natal, mas um lugar real onde assentou suas lendas profundamente humanas e universais. Faulkner é inegavelmente o maior romancista norte-americano desde Henry James - sua antítese. Nenhum outro escritor do século XX alinha-se, de modo tão definitivo, a grande seqüência de mestres da literatura americana: Hawthorne, Melville, Mark Twain e Henry James. Com eles, Faulkner forma a nata dessa literatura, e depois dele o resto é resto. Ainda que estivesse sujeito a influências decisivas, tais como Joseph Conrad e James Joyce, Falkner possuía um talento impar e considerável para a inovação narrativa. Seu gênio é verificado pela capacidade fecunda de criar homens e mulheres convincentes, embora, muitas vezes, terríveis. Seus personagens (com exceção dos idiotas) são todos obsessivamente obstinados e individualistas. Seu gênio narrativo pode ser constatado também através da capacidade de captar, em palavras, experiências humanas tenebrosas e estarrecedoras. Faulkner consegue ser nefasto e dramático ao mesmo tempo, mantendo o suspense para que o clímax, no final, possa ser perturbador. Coisa de matar Dostoievski de inveja!
Apesar disso, Faulkner também era capaz de cometer grandes equívocos e exagerar no experimentalismo (o mal do século) e no fluxo da consciência (às vezes parece uma Virgínia Woolf emaconhada), mas entre 19 romances que escreveu se incluem cinco obras-primas: O Som e a Fúria, Enquanto Agonizo, Santuário, Luz de Agosto, e Absalão, Absalão!... Coisas que por se só já o redimem de qualquer pecado. É verdade que ele jamais voltaria a escrever à altura dessas cinco obras, entretanto, nos últimos livros soube manter certa força ficcional e um humor feroz. Uma Fábula é o seu pior livro; Enquanto Agonizo, o melhor (em minha opinião). E se você ainda não teve o prazer de conhecer Faulkner, sugiro que comece por este, ou por qualquer dos outros cincos melhores. Não vai se arrepender. Mas advirto: é uma bigornada acme!... Os personagens de Faulkner são chocantes. Joe Christmas (paródia sinistra de Jesus Cristo), por exemplo, é uma das figuras mais impactantes que já li até hoje, não podemos simpatizar nem antipatizar com ele, é um desafio a nossa capacidade de interpretação, é a representação daquilo que Freud chamava de instinto de morte!... Eu diria até que é a morte literarriamente personificada. O sonho de Gabriel Garcia Márquez (fã nº 01 de Faulkner) era, e talvez ainda seja, fazer algo parecido com esse Joe. Quem viver verá!
Faulkner ganhou o Nobel, em 1949, quando já tinha perdido o talento, mas houve época em que, desconhecido e sem vender quase nada, se trancou num celeiro com duas caixas de bourbon, que bebeu todas em duas semanas, saindo com um livro ordinário, um potboiler e seguro de que enriqueceria com os direitos autorais. O livro é Santuário, a obra-prima que encalhou, apesar de ter cenas sensacionais como o personagem Popeye, que conforme Faulkner parece uma boneca de cera barbeada. Popeye estupra a moça bem-nascida, Templeton Drake, com um sabugo de milho. Ela adora e, quando é salva do cativeiro de Popeye, tem saudades dele.

Faulkner é assim... vai encarar?

Uma piadinha literária (politicamente incorreta)....


Um professor cego esquece-se da correspondência em sua biblioteca particular, entra na cozinha (por engano) às apalpadelas, pega (por engano) num ralador, apalpa-o e exclama:
-"C*r*lhO, quem é que escreveu esta parvoíce, James Joyce?"


P.S.: Juro que quando me contaram tinha muito mais graça!

domingo, 16 de setembro de 2007

Rainha do crime impossível


Pense num escritor de romances policiais e de quem você lembra? A maioria das pessoas de Agatha Christie. Pense em livro policial – e novamente muitos lembram de O assassino de Roger Ackroyd (1926). Este romance é um dos mais perfeitos exercícios de investigação já escritos, um ardil que, mesmo depois de oitenta anos, de seu lançamento, não deve ser revelado porque sempre haverá novos leitores para se surpreender com seu desenlace. A Ratoeira não é melhor peça dela, mas foi encenada por mais de quarenta anos. E por que? Talvez seja a lenda que existe em torno de Agatha Christie, cuja vida é no mínimo pitoresca: aos quatro anos de idade, já uma, menina curiosa, cultivava o hábito de perguntar a babá o que era toda palavra que via em qualquer lugar que fosse, como por exemplo, na fachada de um armazém. Memorizava as palavras, tornando-se capaz de ler frases sem conhecer as letras. Das frases, ela passou para os livros, tornando-se uma leitora voraz desde muito cedo. Mas nem só de lenda vive o mito, Agatha também tinha um conhecimento preciso do que faz o leitor vibrar – o aconchego misturado com alguns indícios de algo podre por baixo de tudo. Ela adorava o aconchego preferindo Miss Marple e Hercule Poirot, nunca permitindo que a violência entrasse em seus textos. Apesar disso, a sua fascinação por crimes domésticos escoa para milhões de leitores. Eles sabem que quando ele envenena um personagem, está apenas brincando, que o sangue de suas vítimas não vai deixar nenhuma mancha em sua imaginação. Ela não gostava de ver sujeira nem mesmo em sua autobiografia (que levou 15 anos para ser escrita). Contudo há um capítulo muito obscuro em sua vida do qual ela nunca quis falar: quando morreu sua mãe e seu marido pediu o divórcio para casar com a secretária.
Estes dois fatos lhe causaram uma grande crise nervosa que resultou em amnésia. Sabe-se que em uma noite de dezembro do ano 1926, tendo ela 36 anos, desapareceu misteriosamente, e seu carro foi encontrado abandonado numa auto-estrada.
Sobre este acontecimento surgiram muitas especulações, até se pensou que era uma ação para dar publicidade à escritora. O certo é que onze dias mais tarde ela apareceu num hotel litorâneo registrada com o nome da amante de seu marido. Depois de encontrada foi submetida a um tratamento psiquiátrico.
Separada de seu marido e com sua filha internada em um colégio, Agatha viajou sozinha à Bagdá a bordo do Orient Express, trem que serviu de inspiração para uma de suas novelas mais famosas: "Assassinato no Expresso do Oriente".
Agatha deixou sucessores, mas estes não possuem sua ingenuidade. Foi, e ainda continua sendo um dos maiores fenômenos da literatura mundial (com aproximadamente 2 bilhões de exemplares vendidos), e para sempre será a rainha do crime impossível.

Altamente qualificados...


Para investigações empresariais, flagrantes de adultério, paradeiro de adolescentes, ficha de antecedentes criminais, dossiês de vida pregressa entre outros tipos de investigação. É só chamar...

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Erótico neurótico


David Herbert Lawrence nasceu em 1885 em Eastwood, perto de Nottingham. Filho de um homem rude e bêbado e uma ex-professora muito refinada, que o criaram num ambiente de terríveis conflitos conjugais.
A trajetória escolar de David foi exemplar. Na escola secundária de Nottingham foi premiado em matemática, francês e alemão. Logo passou a dominar também o italiano e o espanhol. E não tardou para tornar-se professor em Croydon. Mas uma fúria para escrever o perseguia desde muito jovem.
Aos dezessete anos pegou uma pneumonia que arruinou sua saúde. Pelo resto da vida Lawrece teria que lutar contra a tuberculose (que no fim acabou vencendo). Foi durante a convalescença que começou a escrever e a aperfeiçoar seus poderes literários.
O gênio de D. H. Lawrence é notavelmente versátil, incluindo romances, contos, poemas, ensaios críticos, narrativas de viagem, comentários apocalípticos e quase qualquer outro gênero. Para alguém que morreu aos 44 anos, Lawrence teve uma produção prodigiosa: cerca de 75 volumes, muitos dos quais publicados postumamente - e que hoje é pouco lido. Política e culturalmente incorreto, Lawrence nunca foi muito bem quisto pelos “arcontes” da crítica. O conteúdo declaradamente sexual de suas narrativas foi o principal motivo de sua elevação e queda. A vida e a obra dele são quase inseparáveis, mesmo quando usadas para mútua dissimulação: em todos os texto vemos como, em vão, tentava esconder a própria bissexualidade. A contenda pessoal de Lawrence com questões de identidade sexual e da guerra entre os sexos tem base espiritual e implicações psicanalíticas. A percepção das diferenças espirituais fica patente no confuso confronto com Freud, a quem o escritor não conseguia compreender, ou talvez não desejasse compreender. Seja como for, Freud foi-lhe inteiramente dispensável. A exemplo de Blake, Lawrence foi o profeta de uma visão religiosa controversa, mas abrangente, englobando espírito e natureza. Ele ambicionava criar um moderno culto ao falo, mas sem que isso implicasse em opressão à mulher. Esse culto não deveria, segundo ele, voltar-se ao pênis masculino, mas a um grande Falo Universal, símbolo da fertilidade criadora.
Suas duas obras-primas, plenas de erotismo clássico, são o Arco-Íris e Mulheres Apaixonadas, dois textos que ficarão para a eternidade. Contudo, hoje em dia é só pelo O Amante de Lady Chatterley que seu nome é lembrado. A leitura de qualquer destas obras nos permite perceber que Lawrence pretendia deixar claro que para ele sexo e amor são coisas distintas que merecem tratamentos distintos. É claro que o sexo está contido no amor, mas este é qualitativamente diferente do ato físico através do qual se obtém o prazer físico. Mas não é só isso. A omissão dos detalhes indica que a partir do momento que o amor uniu as personagens, a descrição do ato físico perdeu progressivamente sua importância. Isto reforça a tese de que o autor faz uma clara distinção entre o amor (que contém o sexo) e o ato físico desprovido de emoção. Em virtude disto acreditamos que o livro foi injustamente acusado de ser pornográfico. Só seria pornográfico se o autor insistisse na descrição dos coitos até o final, o que não ocorre. A obra de Lawrence sempre nos coloca diante de uma questão delicada: o desejo sexual é fruto de uma opção consciente ou conseqüências de nossas tendências naturais? Leiam e respondam.
Visionário e demoníaco, perturbado e perturbador, D. H. Lawrence foi o gênio mais autêntico que a literatura do século XX pôde ensejar.
É verdade que ele está fora de moda por ter sido alvo da antipatia da crítica politicamente-correta, à qual praticamente nenhum escritor é capaz de sobreviver nos dias de hoje. Mas o gênio sempre acaba por enterrar seus próprios agentes funerários, e eu tenho certeza que sete décadas após sua morte, Lawrence, nas páginas mais marcantes de sua obra, continua a transmitir energias ferozes de espírito, determinação e audácia.

Além de tudo, se dizia pintor....

A Sagrada Família, segundo D. H. Lawrence
(só se for a dele!)

domingo, 9 de setembro de 2007

Sozinho


Sei que muita gente nunca ouviu falar dele, e os poucos que ouviram talvez nunca leram. É raro aparecer alguém na biblioteca à sua procura, e quando aparece não o encontra, visto que já não está disponível. E tudo isso é extremamente lamentável, pois Cesare Pavese, a despeito do esquecimento, foi um dos mais grandiosos romancistas italianos do século XX. Eu diria que ele está para a Itália assim como Albert Camus está para França: o homem que sozinho incorporou e expressou a solidão de todos os homens!...

Isso pode ser comprovado nos livros La luna e i falò (A Lua e as Fogueiras) e Tra Donne Sole (Entre Mulheres Apenas), ambos situados na Itália do pós-guerra. Toda a literatura de Pavese fala-nos de como viver é sempre um ato solitário, apesar da pulsão para o outro, apesar da necessidade de amar. O mundo é o que cada um conhece: aquilo que acaba e começa em nós. E o amor é antes uma força destrutiva que salvadora. Uma pessoa não se mata por amor a outra – dizia ele - mas porque o amor, qualquer amor, nos revela a nossa nudez, a nossa miséria, a nossa vulnerabilidade, o nosso vazio.
Sempre que leio Pavese me pergunto quem poderia tê-lo magoado tanto. Por toda a sua obra ouvimos ecos de uma vida terrivelmente solitária, marcada por uma necessidade desesperada de amor (nunca correspondido), pela amargura e desolação, por uma infância assombrada pela morte do pai e vivida com uma mãe insensível (que desapareceu quando ele tem 13 anos). Escreveu-se, a propósito de Pavese, que a constatação da sua inadaptabilidade à vida o fez refugiar-se na literatura. Difícil contestar.
Com uma angustiante melancolia, ele constrói uma narrativa onde tudo aparece como mutável e imutável, como variações e contradições das paisagens exteriores e interiores do narrador. Há as oposições entre o campo, uma espécie de paraíso perdido, e a cidade, entre a aldeia e as cidades da Califórnia, entre o permanecer e o partir. Há em cada página dos livros de Pavese doses cavalares de existencialismo puro, que sem dúvida fazem dele o grande rival de Camus, seu duplo.
Para quem ainda não o conhece, e hesita em conhecer o desconhecido, recomendo que leia A Lua e as Fogueiras, romance escrito por ele meses antes de se suicidar, em Turim, num quarto de hotel, quando tinha apenas 42 anos. Eu considero sua obra-prima, emblemática, aquela que o confirma como romancista e poeta fundamental da literatura italiana. Depois, se tiver coragem, leia seu diário, intitulado O Mistério de Viver, que para ele foi mais um tormento que um mistério. Entre outras preciosidades você encontrará essa triste confissão de cansaço anotada nove dias antes de tentar estancar o sangue que lhe corria nas veias: "Um imenso fastio de tudo. Basta de palavras. Um gesto. Não escreverei mais."

Calar é a nossa força

um antepassado nosso deve ter-se sentido muito só

um grande homem entre imbecis ou um louco coitado

para ensinar aos seus tanto silêncio.


Cesare Pavese

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

O Anjo Banido

Certo dia no apogeu do seu reinado, o imperador Ming Huang recebeu embaixadores da Coréia que lhe trouxeram importantes mensagens escritas num dialeto que nenhum dos seus ministros conseguia entender. Indignado e constrangido pela situação, o imperador decretou que se a mensagem não fosse decifrada no prazo de três dias, todos os seus ministros seriam enforcados.
Durante um dia os ministros confabularam e se atormentaram temendo pelas próprias vidas, até que se lembraram de chamar um poeta chamado Li Po, que era conhecedor de todas as línguas. Li compareceu, leu a carta e ditou uma resposta sábia, que o imperador assinou sem hesitar, quase acreditando no que seus ministros diziam: que o poeta era na verdade um anjo banido do céu por uma alguma travessura.
Provavelmente essa estória é uma invenção do próprio Li, que se empenhava em ser uma lenda. E conseguiu.
Na noite em que Li Po nasceu, no ano de 701, sua mãe – pertencente à família Li – sonhara com Tai-po Hsing, a Grande Estrela Branca, que no ocidente é conhecida por Vênus. Assim a criança foi chamada de Li, que significa jóia, e recebeu o sobrenome Tai-po, Estrela Branca. Aos 10 anos de idade, ele já conhecia a fundo todos os livros de Confúcio, fazia comentários do Tao e compunha poesias imortais. Era autodidata e um tanto megalômano; supunha-se capaz de seduzir qualquer mulher com seus versos melífluos.
Com efeito, casou cedo, mas ganhou tão pouco dinheiro que a esposa o deixou e levou os filhos. O imperador ajudou-o e cobriu-o de presentes por ele ter prometido compor a mais bela elegia poética jamais escrita para uma mulher, que neste caso seria Yang Ywei-fei, a prestigiosa concubina imperial. Li cumpriu a promessa, mas a chata da Yang achou o poema excessivamente erótico, quase lascivo, e conseguintemente convenceu o imperador a banir o poeta dos domínios do Império do Meio, ou seja, de toda a China.
Desde então Li Po nunca mais teve sossego, e levou uma vida errante e abjeta.
Os últimos anos do poeta foram os mais amargos, pois ele jamais se humilhou para ganhar dinheiro e no caos da guerra e da revolução não encontrou um único mandarim que lhe evitasse a fome. No entanto, ao final dos tumultos foi declarada anistia geral e o velho Li pôde se dirigir para casa os seus passos vacilantes. Três anos depois adoeceu e morreu, mas a lenda, descontente com essa morte comum para uma alma tão rara, contou que ele afogou-se num rio, bêbado, tentando abraçar o reflexo da lua na água.
No conjunto, os trinta volumes de versos delicados e agradáveis que Li deixou garantem-lhe a reputação de maior poeta da China. “Ele é o ápice sublime do Tai dominando milhares de montanhas e colinas, é o sol em cuja presença milhões de estrelas do céu perdem o brilho cintilante” - afirmou um crítico chinês.. O mundo ocidental conheceu Li Po através de uma tradução livre realizada por Ezra Pound, e da qual Cecília Meirelles nos deu uma versão em português. Graças as muitas imagens taoistas vertidas em sua poesia, Li Po escrevia com a simplicidade de um poeta moderno, e sua melancolia, às vezes, chega a lembrar o heteronômio pessoano Alberto Caiero.
Aproximadamente mais de mil dos seus poemas subsistem na atualidade.
Portanto, podemos declarar que o imperador Hang e Yang sua antipática concubina estão mortos, mas Li Pó ainda canta!

A esposa do guerreiro está sentada à janela.

De coração aflito, borda uma rosa branca numa alfofada de seda.

Picou-se no dedo! Seu sangue corre na rosa branca, que se torna vermelha.

Seu pensamento vai ter com seu amado,

que está na guerra e cujo sangue tinge, talvez, a neve de vermelho.

Ouve o galope de um cavalo... Chega, enfim, seu amado?

É apenas o coração que salta com força no peito...

Curva-se mais sobre a almofada e borda com prata

as lágrimas que cercam a rosa vermelha.

Li Po


(Tradução de Cecília Meireles)
Do livro: "Poemas Chineses / Li Po e Tu Fu", Nova Fronteira, 1996, RJ