sábado, 20 de fevereiro de 2010

Da Ausência como Cegueira e Incompreensão


Como é do conhecimento de todos, Deus, já há algum tempo, foi solenemente instado a se retirar do quadro de referências da moderna cultura ocidental. Com efeito, e desde então, o ditame imperativo da intelectualidade laica, segundo o consenso dos que ainda são aptos a discernir, é o imanentismo radical, isto é, a rejeição de um sentido transcendente da existência e a total circunscrição das experiências humanas ao reino deste mundo - tão vasto, largo e profundo quanto o nosso próprio umbigo. Porém, embora esteja na moda, ou ditando moda, o imanentismo radical só é novo mesmo em sua radicalidade, visto que antes já existia como harmonioso contraponto à noção - agora segregada e tolhida - de transcendência. Na literatura, a tensão permanente entre esses dois pólos foi sempre o fator preponderante para criação daquilo que se convencionou chamar de obra-prima, clássica ou canônica, onde o leitor desavisado, mas sempre fascinado, deparava-se com seus próprios pensamentos, atos e palavras que, no momento sublime da leitura, eram-lhe restituídos com majestosa beleza e iniludível verdade. Não obstante, uma vez que excluiriam Deus, logo evanesceram os atributos artísticos de beleza e verdade!... E a cultura ocidental, particularmente a literatura, de imediato resvalou na tautologia da “arte pela arte”, que começa e termina em si mesma, num intimismo quase autista. Muitas são as conseqüências deste fenômeno, sendo mais evidente a abolição da Autoria. Não falo do direito autoral, mas da “autorictas” (a autoridade e alteridade) do autor, que agora já não responde pelo amontoado de palavras que contextualizou sem nada dizer, e pelo leitor que, do outro extremo da anarquia, reivindica o direito absoluto de ele mesmo atribuir, ou não, algum significado - contentando-se por vezes com a recitação masturbatória de impressionismos ruidosos e ocos. Som e fúria!... O que caracteriza, portanto, a literatura moderna como um todo (salvo preciosas exceções) é a perda dessa dialética tensional e, sobretudo, a extinção da boa cumplicidade entre escritor e leitor na geração responsável da significação do texto – daí tantos clássicos ininteligíveis de um lado e tantos best-sellers descartáveis de outro. É verdade que Joyce quis encontrar uma via média, mas, ao limitar (kantianamente) as possibilidades de conhecimento aos fenômenos sensíveis e às formas vazias de intelecção, reduzindo tudo a um subjetivismo tirânico, criou a forma mais requintada e letal de imanentismo moderno: a “Egofania”. Depois disto a literatura perdeu, juntamente com o referencial de Deus, o direito a significação própria, tornando-se refém das mais estapafúrdias teorias literárias - perante as quais já não existe autor, discurso, enredo, texto, referência ou significado, mas quando muito um leitor que, arrogante e cego, tenta inteligir formas que não representam nada mais que o desdobramento hipotético de sinais semânticos num pedaço de papel. Isso acontece porque a face de Deus em direção à qual o sinal semântico se voltou para ser legitimado foi nublada pelo solipsismo luciferino de autores-leitores vaidosíssimos e, por isso mesmo, deficientes. E tal deficiência não é outra coisa senão essa lamentável insensibilidade à transcendência. Pergunto-me que moderna teoria literária pode colaborar minimamente para a compreensão da estrutura teológica do "Paraíso Perdido" de Milton? Qual delas pode explicar, sem rodeios semióticos, as gradações de luz por meio da qual Beatriz se aproxima de Dante no canto XXX do "Purgatório"? Ou mais recentemente, qual a lógica do desejo metafísico que, para além de sofismas psicanalíticos, move e comove os personagens de Dostoievski, de Proust, de Guimarães Rosa ou de Flannery O’Connor? A grande arte, seja em seu aspecto afirmativo ou negativo, é religiosa. Tanto Ésquilo ou Cervantes, Tolstoi ou Comac MacCarthy são escritores cuja genialidade está nas mãos de um Deus vivo - que todavia poucos conseguem inteligir. Para eles, assim como para Kierkegaard, a existência humana, mesmo numa representação ficcional e artística é “Ou\ou”. Aqui cumpre dizer que a melhor definição moderna de representação artística é aquela que a qualifica como formas de literatura, pintura e música nas quais já não se tem mais a experiência de Deus como inspirador, predecessor, competidor ou mesmo antagonista da noite escura da criação (como a de São João da Cruz, que é a longa noite de todos os poetas verdadeiros). Contrariamente, em escritores-leitores da moda, que convencidos pelo sofisma de Protágoras (velho adversário de Platão) para quem o homem é a medida de todas as coisas, a arte é um monólogo do tipo “shadow-boxing” – uma briga com a própria sombra – que pode ser encenado na música atonal ou aleatória, na arte abstrata ou não-representativa, em certas formas de escrita dadaísta, surrealista, automática ou concreta. O referencial será sempre Eu. Portanto, decifra-me ou te ignoro. Eis aqui o diagnóstico da nossa cegueira. E para completar e agravar o estado de trevas tenebras desse imanentismo umbilical, concorrem sempre as novas teorias literárias. Sim, pois o carnaval relativista e as orgias egofânicas do pós-estruturalismo, da jouissance de Barthes, das psicologices de Lacan, das elucubrações “sofisticadas” de Derrida, de Saussure e Foucault, do desconstrucionismo e de todas aquelas, enfim, que ocupam o espaço inteiro do ensino acadêmico nestes tempos de cegueira - são doenças espirituais, obsessões que nos encerram hipnoticamente no fascínio de uma resposta ao mesmo tempo que apagam o quadro de referências que dá sentido à pergunta. Por isso, e só por isso, o Artista Criador Soberano se ausentou. Mas grande parte do público também.