domingo, 31 de agosto de 2008

A Indecência Sagrada


Nascido 8 anos depois de Shakespeare, John Donne cresceu e morou em Londres a vida inteira; uma vida que como as máscaras da dramaturgia, teve uma face cômica e outra trágica. Na juventude foi um cavalheiro abastado, que desfrutava da reputação de poeta erótico e satírico. Assíduo freqüentador de teatro, assistiu a primeira encenação de “Ricardo III”, de Shakespeare, e saberia apreciar o progresso (ou declínio) do monarca martirizado, que, de governante autoritário, vem a ser poeta metafísico, bem ao estilo do próprio Donne. O Volume “Canções e Sonetos” só foi publicado dois anos após seu falecimento, mas alguns poemas ali coligidos haviam circulado, amplamente, em panfletos manuscritos, o que lhe garantiu certa notoriedade. A ascensão social de John Donne, a partir da conversão, em 1602, do catolicismo para o protestantismo, sobreveio na sucessão de reveses que tornara sua vida outrora festiva e hedonista numa legenda trágica, repleta de perdas e dores. Seus parentes morreram, seus bens foram confiscados (por ser católico), e a Peste Negra contaminou-o. Houve algumas compensações, pois após a conversão, Donne casou e tornou-se rapidamente célebre pregador e, em 1621, foi nomeado decano da Catedral de Saint Paul. Em sua maioria os “Sonetos Sagrados” foram escritos antes da ordenação de Donne, assim com a grande meditação “Sexta-Feira Santa”. Os dois hinos magníficos – “Para meu Deus, na agonia” e “Para Deus Pai” – foram, provavelmente, compostos em 1623, entre novembro e dezembro, quando os médicos já o haviam desenganado, e os sinos de sua Catedral, o dia inteiro e todos os dias, tocavam dobres fúnebres pelas vítimas da Peste. Foi também nesta ocasião que ele escreveu o conhecidíssimo poema “Por Quem os Sinos Dobram (Meditação XVII)”. À exceção destes escritos, Donne havia abandonado a poesia pela metafísica e teologia. Seus sermões, no quem de melhor, figuram entres os mais contundentes do cristianismo, e suas preces são até hoje as mais belas da liturgia anglicana. Como um Góngora inglês, ao mesmo tempo sagrado e profano, John Donne foi continuamente valorizado até o século XIX, influenciando grandes poetas místicos como o reverendo Coleridge e o padre Gerald Hopkins. Depois passou um tempo completamente esquecido, até que no século XX o poeta anglo-católico T.S. Eliot o ressuscitou. O leitor comum, mesmo que não familiarizado com alta poesia, pode ler Donne sem dificuldade e ainda constatar que a sua obra é perene e jamais ficará datada. Sua arte, uma intermitência de dor e prazer, descende daquele lirismo de sacralidade erótica do “Cântico dos Cânticos”, e revela a alma em sua completa humanidade. Todos os seus textos são um testemunho da inquietação espiritual que dialeticamente oscilava entre a contemplação dos prazeres terrestres e do ascetismo cristão. Essa dialética era a sua maneira de suportar a dor, as perdas e a doença. Como um Jó altivo e sensual, ele desafia Deus, se solidariza com todos os sofredores, e medita sobre sua condição comum, e disso surgem poemas como este:


Tu perdoas o pecado em que intervim

E fiz outros pecar – meus pecados portais?

Tu perdoas o pecado evitado por mim

Por um ano ou dois, mas curtido bem mais?

Ao chegares ao fim, tu não terás o fim,

Pois inda tenho mais.”


Foi num destes momentos que ele afirmou que “nenhum homem é uma ilha”, e assim definiu a perda que sentimos reciprocamente diante de cada morte. Sempre quando leio a poesia de John Donne fico extremamente impressionado com a capacidade do espírito humano de fazer arte não só no prazer e para o prazer, mas também na dor e na iminência do fim.

VEM, Dama, vem, que eu desafio a paz;

Até que eu lute, em luta o corpo jaz.

Como o inimigo diante do inimigo,

Canso-me de esperar se nunca brigo.

Solta esse cinto sideral que vela,

Céu cintilante, uma área ainda mais bela.

Desata esse corpete constelado,

Feito para deter o olhar ousado.

Entrega-te ao torpor que se derrama

De ti a mim, dizendo: hora da cama.

Tira o espartilho, quero descoberto

O que ele guarda, quieto, tão de perto.

O corpo que de tuas saias sai

É um campo em flor quando a sombra se esvai.

Arranca essa grinalda armada e deixa

Que cresça o diadema da madeixa.

Tira os sapatos e entra sem receio

Nesse templo de amor que é o nosso leito.

Os anjos mostram-se num branco véu

Aos homens. Tu, meu Anjo, és como o Céu

De Maomé. E se no branco têm contigo

Semelhança os espíritos, distingo:

O que o meu Anjo branco põe não é

O cabelo mas sim a carne em pé.


Deixa que a minha mão errante adentre

Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.

Minha América! Minha terra à vista,

Reino de paz, se um homem só a conquista,

Minha Mina preciosa, meu Império,

Feliz de quem penetre o teu mistério!

Liberto-me ficando teu escravo;

Onde cai minha mão, meu selo gravo


Nudez total! Todo o prazer provém

De um corpo (como a alma sem corpo)sem vestes.

As jóias que a mulher ostenta

São como as bolas de ouro de Atalanta:

O olho do tolo que uma gema inflama

Ilude-se com ela e perde a dama.

Como encadernação vistosa, feita

Para iletrados, a mulher se enfeita;

Mas ela é um livro místico e somente

A alguns (a que tal graça se consente)

É dado lê-la. Eu sou um que sabe;

Como se diante da parteira, abre-

Te: atira, sim, o linho branco fora,

Nem penitência nem decência agora.


Para ensinar-te eu me desnudo antes:

A coberta de um homem te é bastante.


John Donne

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

A Nova Idade das Trevas... ou do Esquecimento.

Houve um tempo em que entre Religião e Cultura havia uma equivalência, quase uma sinonímia óbvia - aliás, ainda há, só que esta equivalência, ou sinonímia, é hoje algo despercebido, esquecido. E, ironicamente, estando sintetizados pela Igreja, pelas artes, pela filosofia e pela literatura, a religião e a cultura são ainda os únicos componentes de uma civilização que podem sobreviver quando ela chega ao término da sua duração histórica. São os valores universais, que, por servirem a toda a humanidade e não somente ao povo em que se originaram, justificam que ele seja lembrado e admirado por outros povos. A economia, a política, a tecnologia e a ciência são apenas o suporte, local e temporário, de que a civilização se utiliza para seguir vivendo enquanto gera os símbolos nos quais sua imagem permanecerá quando ela própria já não existir. Nenhum povo ascendeu ao primado econômico e político para somente depois se dedicar a interesses espirituais ou intelectualmente superiores. O inverso é que é verdadeiro: a afirmação das capacidades civilizacionais da religião e da cultura antecedem as realizações político-econômicas.
A Itália medieval, por exemplo, mesmo politicamente fragmentada, foi o ponto de encontro do espírito humano com a mais absoluta perfeição artística. A França foi o centro literário e cultural da Europa muito antes das pompas de Luís XIV. Os ingleses, antes de se apoderarem dos sete mares, foram os supremos fornecedores de santos e eruditos para a Igreja. A Alemanha foi o foco irradiador da Reforma e em seguida o centro intelectual do mundo - com Kant, Hegel, Goethe e Schelling - e antes mesmo de constituir-se como nação. Os EUA tinham três séculos de religião devota e de valiosa cultura literária e filosófica antes de lançar-se à aventura industrial que os elevou ao cume da mais dinâmica prosperidade. Os eslavos e escandinavos também tiveram seus santos, filósofos, poetas - sem falar nos dois maiores romencistas de todos os tempos - e isso antes do carvão, do aço e, atualmente, da enérgia nuclear ou do invejável IDH. Aqui não convém desdenhar dos espanhois e portugueses, que complexados por não acompanharem pari passu o pensamento moderno, acabaram se esquecendo daqueles fantásticos padres-filósofos de Salamanca e Coimbra, mestres de Descartes e Leibniz, que em pleno século XVI já pensavam em economia de mercado e física probabilística, saltando três séculos sobre a ilusão mecanicista cujo prestígio, tão invejado pelos ìluministas ibéricos, só fez atrasar o desenvolvimento das ciências e inspirar, na política, os frutos mais letais da falência estatal. O poder ocidental, então, foi de alto a baixo fruto da religião cristã - religião que seria inconcebível se não tivesse encontrado, como legado das tradições judaica e greco-latina, a semântica poderosa e sutil da Igreja, que irradiaria o conhecimento da Bíblia e da Antiguidade Clássica.
A experiência e herança de dois milênios, no entanto, pode ser obscurecida até tornar-se invisível e inconcebível. Basta que novos bárbaros, travestidos de intelectuais, invadam nossa escolas e nos eduquem para a preguiça e o esquecimento. Coisa que desde há muito vem acontecendo. Por toda parte, as universidades - antigas filhas das igrejas - são hoje, de uma perspectiva intelectual, intrigueiras, doentes, falidas, e, salvo exceções, dirigidas por impostores que, inveriavelmente, duvidam de Deus e desconfiam do homem. O abismo entre o progresso material e a cultura espiritual aumenta de dia para dia, e as armas desse progresso nas mãos dos bárbaros é fato que salta aos olhos de quem ainda pode enxergar. Olhamos em volta e vemos que as universidades foram reduzidas a escolas (superiores) profissionalizantes ou, quando muito, em cursinhos de ideologia, onde toda bagagem intelectual do "acadêmico" se reduz a um punhado de jargões niilistas, clichês relativistas e slogans demagógicos. A bem da verdade, os edifícios das universidades ainda resistem, e neles trabalha-se muito, demais, às vezes, mas o edifício do espírito, esta catedral invisível, está ameaçado de cair em ruínas. Em tempos mais felizes a sueca Ellen Key dizia com sutileza: "Cultura é o que nos resta depois de termos esquecido tudo quanto aprendemos." Mas que dizer quando o "esquecimento" é já em si um imediato fator cultural. Com efeito, somos riquíssimos de informação imediata, porém mendigos de cultura. Hoje em dia H. G. Wells poderia dizer melhor do que antes: "We are entered in a race between education and catastrophe..." ("Entramos numa corrida entre educação e catástrofe..."). Aí está a questão da Universidade.
Entretanto, não é sobre universidades que pretendo falar, é sobre trevas e esquecimento. O escritor Jorge Luis Borges dizia que "a memória é o essencial, visto que a literatura está feita de sonhos e os sonhos fazem-se combinando recordações!" Noutra ocasião, ele também ressaltou que "somos nossa memória, somos esse incomensurável museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos rompidos." E ainda numa acertiva máxima, ele declarou que "o livro é uma extensão da memória e da imaginação." A memória é pois, naturalmente, o ponto crucial, a pedra de toque que infelizmente, neste tempo de arrogantes esquecidos, converteu-se em pedra de tropeço!... A capacidade de reagir ao texto, a compreensão e a resposta crítica ao autor, pertinentes ao ato pleno da leitura dependem estritamente das artes da memória, isto é, do saber de cor (termo que merece atenta reflexão). Saber de cor é uma arte, ou melhor, uma tradição cultural que prevaleceu na educação do ocidente desde a idade média até a Primeira Guerra Mundial. Thomas Mann, por exemplo, na infância havia decorado toda a Ilíada e o Livro de Jó. Os monges e cléricos (ou clercs como se dizia nas escolas inglesas) sabiam e ensinavam de cor extensos trechos das Escrituras Sagradas, da liturgia, da poesia, épica e lírica. A capacidade de citar e recitar de memória capítulos de Homero, Virgílio, Horácio ou Ovídio, de ter sempre uma citação apropriada de Dante, Shakespeare, Milton ou Platão gerou uma tessitura compartilhada de ecos, de identificações e reciprocidades intelectuais e emcionais sobre as quais fundamenta-se a linguagem da filosofia, da política, da jurisprudência, das leis e das ciências ocidentais. O conhecimento de cor das fontes latinas da cultura, de La Fountaine, de Racine, das frases de impacto de Oscar Wilde deram à vida cultural da Europa o seu caráter retórico. O leitor autêntico, o lector ou lisant, como se dizia na Idade Média, situava o texto que estava lendo num espaço cheio de ressonâncias. Um eco respondia a outro, a analogia era precisa e imediata, as correções e as emendas eram justificadas por precendentes evocados com precisão. O leitor reagia ao texto com todo este repertório de referências e associações. Mas isso é coisa do passado!... Quantas pessoa com dotes semelhantes, atualmente, você conhece? Decerto, poucas, talvez nenhuma. Mas não se envergonhe porque vivemos na era do esquecimento, a nova e verdadeira idade das trevas, em que não há restrição de livros, mas de leitores. Nesta era a atrofia da memória é característica principal da educação. A grande maioria de nós já não sabe identificar - e muito menos citar - até mesmo as passagens bíblicas mais importantes, tampouco os textos subjacentes à leitura ocidental (de Camões a Cora Coralina, de Goethe à Guimarães Rosa, os textos carregam dentro de si o eco implícito dos textos que os antecedem). As mais elementares alusões à Mitologia Grega, ao Antigo e ao Novo Testamento, aos clássicos, à história antiga e ocidental tornaram-se herméticas. Pequenos retalhos de textos sobrevivem agora precariamente à custa de pretenciosas notas de rodapé. A identificação da fauna e da flora, das principais constelações, das liturgias das horas e das estações do ano, que, como demonstrou C.S. Lewis, são conhecimentos essenciais à mais simples compreensão da poesia ocidental, do drama, do romance, de Bocaccio a Tennyson, são considerados hoje em dia um saber especializado. Já não mais aprendemos de cor. Os interstícios de nosso saber já não comportam ecos, pois estão entulhados de trivialidades estridentes, de lixo ideológico, de preconceitos politicamente-correto, todos cimentados por uma inexpugnável preguiça mental. O ensino escolar de nossos dias, princialmente o universitário, o acadêmico, é amnésia programada. Estamos esteticamente falidos, agonizantes. Logo resta-nos apenas um esplendor tecno-científico, uma semântica de estímulos auditivos e visuais, em que telas e monitores substituem livros. A ciência e a tecnologia não passam pelo processo de declínio observado em outras áreas da criação humana. Mas isso não invalida o diagnóstico geral. Digamos então que o estado da alma ocidental não é feliz. Não encontramos ninguém dizendo a frase de Erasmo no começo da Renascença: "Que tempo maravilhoso para se viver!". Por isso precisamos reavaliar nosos conceitos de civilização, de cultura, de identidade e sobretudo de educação.
A moderna educação ocidental nos acostumou a ler a historia antiga e sobretudo a medieval sob a ótica de "valores modernos" (termo bastante paradoxal!). Porém, quem já tentou ler a modernidade através da Idade Média?... Por que não podemos, em vez de medir o passado com a régua dos senhores do dia, julgar os senhores do dia à luz das sementes cujo máximo e perfeito desenvolvimento eles, sem a mínima prova, asseguram representar? Por que não nos atravemos a provar que as antigas sementes, plantadas em terra nova, podem dar melhores e mais doces frutos do que as ideologias niilistas, positivistas, anarquistas, relativistas, multiculturalistas das quais pendem toda degradação intelectual de hoje?
Toda a civilização ocidental nasceu de surtos religiosos da Igreja Cristã. Jamais existiu uma “cultura laica”. E longo tempo decorrido da fundação desta civilização, nada impede que alguns valores e símbolos sejam separados abstrativamente das suas origens e se tornem, na prática, forças educativas relativamente independentes. Até isso ela propiciou.
Mas digo “relativamente” porque, qualquer que seja o caso, seu prestígio e em última análise seu sentido continuarão devedores da tradição religiosa e não sobrevivem por muito tempo quando ela desaparece da sociedade em torno. Toda “cultura laica” não é senão um recorte operado em códigos e referências religiosas anteriores. Esse recorte pode ser eficaz para certos grupos dentro de uma civilização que, no fundo, permaneça religiosa, mas, suprimido esse fundo, o recorte perde todo sentido. A incapacidade de uma leitura autêntica e proveitosa decorre, portanto, apenas disso. O presente estado de coisas nos países que se desprenderam mais integralmente de suas raízes judaico-cristãs está demonstrando com evidência máxima que a pretensa “civilização laica” nunca existiu nem pode existir. E a literatuta é somente um indício.

sábado, 23 de agosto de 2008


Um blog sobre a decadência da literatura, o fim da civilização & outras amenidades.

Entreouvido na livraria...


Moça do caixa olhando a assinatura do cheque do cliente: Allan Kardec.


- Meu pai admira muito a obra do senhor!...

sábado, 16 de agosto de 2008

Palavras cantadas...


As moça de Jaguaripe

Choraram de fazê dó

Seu "Dori" foi na jangada

E a jangada voltou só


Dorival Caymmi
(30 de abril de 1914 - 16 de agosto de 2008)
Mundo menos interessante e mais silencioso.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008


"Os corvos afirmam que um só corvo seria capaz de destruir os céus. Sobre isso não há dúvida, mas isso nada prova contra os céus, pois o céu, simplesmente, significa a impossibilidade dos corvos!"


Franz Kafka

Um Teólogo Secular


A exemplo de outras obras excepcionais da literatura, das artes plásticas e da música, a ficção de Franz Kafka é a que hoje, mais contundentemente, convida o ser humano perplexo a decifrá-la, e faz desse convite uma armadilha religiosa. Na condição de indivíduo e escritor, Kafka foi uma seqüência de imensos paradoxos. As suas maiores obra de ficção – “O Processo” e “O Castelo” – não chegam a desafiar “Em Busca do tempo Perdido”, de Proust, “Ulysses”, de Joyce, ou mesmo “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann. No entanto pensamos no século XX como uma leitura de Kafka, e não de Proust ou Joyce, e muito menos de Thomas Mann. Na vida, ele foi do mesmo modo tão bem-sucedido quanto fracassado. Não tinha formado família; sua carreira jurídica na área de seguros era, na melhor, das hipóteses, sofrível e risível; o sucesso literário, avaliado por qualquer escala pessoal ou pública, escapou-lhe quase por completo; sua aparência física inspirava certa reação divertida, ou prognósticos desfavoráveis: quer pela feiúra, quer pela timidez; seus relacionamentos eróticos terrivelmente complicados – como seu prolongado noivado com Felice Bauer e seu amor por Milena – terminavam sempre mal. E sempre que se via na iminência de assumir um compromisso, Kafka refugiava-se na doença, a tuberculose, que viria a causar-lhe a morte prematura. Em qualquer biografia não podemos deixar de perceber a etiologia psicossomática da doença e de observar que era uma situação consentida. Kafka usava a doença como ela o usava, e essa reciprocidade tornava ainda mais profundos seus sentimentos de culpa. Tanto em relação aos ideais pessoais, literários e religiosos como às expectativas brutalmente expressas por seu pai, Kafka declarava-se um fracassado total, um decaído. Daí a culpa ser o seu tema mais recorrente e, por conseguinte, o objeto de sua “teologia secular”, disfarçada de literatura. Entretanto, por mais que negasse possuir sabedoria ou percepção religiosa, Franz Kafka foi, depois de Dostoievski, o mais arguto teólogo secular da moderna literatura ocidental. E cada vez que o releio percebo o quanto é estranha e, ao mesmo tempo, inquestionável sua profunda espiritualidade. Cumpre-me confessar que não gosto de Kafka, não sou fã, muito embora tenha lido tudo que dele pudesse encontrar com a mesma avidez e asco. Poucos escritores, só os grandes, conseguem tal proeza. Em meio a toda uma ambientação voltada para o mundano, o político e o racional, Kafka compõe um conjunto de parábolas, de alegorias, de aforismos e de comentários cuja essência é - técnica e substantivamente - sagrada, teológica e religiosa. É aí que se observa a ascendência espiritual pessimista de Pascal, Kierkegaard e Nietzsche, e ao mesmo tempo a influência ficcional de Dostoievski, primo literário, cuja força narrativa revela como a santidade encontra-se lado a lado com o mais profundo ódio. Neste termos, ousaria dizer que Kafka é um judeu eminentemente talmúdico, mas com aspirações de cristão protestante. As aflições de Caim e Abel, de Abraão e Isaac, de Jó e seus amigos, de Judas e Jesus Cristo, cuja dialética é desafiadora e enigmática, são as mesmas aflições que atormentam Gregor Sansa, Joseph K. e todos os K. que figuram na obra de Kafka, e terminam por destruí-lo. A tristeza, a angústia e o desalento supremos dos seus livros, suas cartas, seus diários, de tudo, enfim, que ele escreveu, é incomensurável. Porém ele também era um satirista social, um virtuoso do grotesco, do absurdo, que sabia parodiar os temas mais sérios. Não obstante, sob todos os chistes, piadas e anedotas, as invenções ficcionais de Kafka constituem uma prodigiosa façanha de indagação metafísico-religiosa. Reconheço que Kafka é escorregadio e bastante refratário às definições, e tudo que diz respeito a esse artigo é paradoxal, pois Kafka certamente dele fugiria. Mas do que não fugia Kafka?
Além de ter sido o teólogo da dúvida, Kafka foi também o gênio literário do isolamento. E toda a sua obra perturbadora ensina-nos a vislumbrar o quanto podemos "ser" ou "estar" sozinhos.

Predestinação: a religião político-jurídica de Kafka!


Por mais que Deus e a religião sejam aparentemente imperceptíveis na obra de Kafka, eles não estão ausentes. Sua literatura essencialmente onírica e estruturalmente absurda prefigura uma teologia desafiadora, cuja fé irrompe das convulsões de uma agonia de dúvida, como em santo Agostinho, Lutero, Pascal, Kierkegaard, Dostoievski e Nietzsche. Essa esplendorosa agonia Kafka encontrou nos fardos da vida cotidiana. Como judeu crescido em civilização cristã, ele absorveu o que havia de mais desconcertante nestas duas tradições religiosas: o fatalismo da eleição divina, ou melhor, a predestinação. Esse é o tema de toda a sua literatura, e cada um dos seus romances o observa sob diversos prismas. O Processo é um apólogo e uma apologia, ao mesmo tempo. Sob o véu da alegoria, Kafka instrui acusação contra a justiça do tribunal divino. O delito desconhecido do personagem K. é o pecado original. O processo judicial é o signo da predestinação. E o que K. evita, sem compreender, pelas suas atividades é a graça. A prisão de K. não passava de uma provocação por parte daquele estranho tribunal, segundo o qual, o próprio personagem tem de criar pelas suas atitudes as razões de sua absolvição ou condenação. E, sem querer, cria o delito mortal, prevalecendo-se obstinadamente da sua inocência. Faz tudo o que se pode fazer: contrata um advogado e um médico, corrompe o carcereiro e o escrivão. Mas eles não podem ajudá-lo porque nenhum deles compreende o processo melhor do que o próprio K., todavia todos estão convencidos da justiça e da onipotência do tribunal; por isso aconselham K. a confessar um crime que ele não conhece e nem pode conhecer. E neste contexto absurdo K. não faz mais que jogar o processo contra si mesmo. Ao longo de toda a narrativa o homem é apresentado como uma vítima passiva da perseguição celeste. No conto “A Colônia Penitenciária”, que é uma continuação de “O Processo”, vemos uma terrível máquina de precisão marcar no corpo dos forçados, por meio de agulhas incandescentes, os nomes dos delitos, que são desconhecidos dos próprios condenados. A tortura pela qual a sua culpa lhe será revelada é a única esperança, pois saber o nome do delito é a condição preliminar para saber justificar-se. No romance inacabado “O Castelo”, a questão se inverte, mas ainda requer a mesma resposta. Ainda nesta narrativa o herói se chama K., somente K.! E o seu adversário não é desta vez um tribunal, mas o Castelo, o lugar onde a graça e a redenção estão concentradas. Ao pé deste castelo há uma aldeia, onde os camponeses, crentes humildemente submissos, executam suas tarefas diárias. K. também desejaria ser camponês nessa aldeia. É preciso frisar: ele o quer, ele o exige mesmo. Desejaria obrigar o Castelo a conceder-lhe o direito de permanência na aldeia. Quer forçar esta comunhão com fiéis mesmo sem ser um “eleito”. E o que ele pode fazer para ser um eleito? Ninguém sabe. Predestinação! Mesmo depois de acolhido, K. é logo coagido a deixar a aldeia por um dos filhos do castelão. Ele então recorre a uma mentira dizendo que foi contratado para trabalhar como nivelador. Resolvem telefonar para o Castelo. E o Castelo responde de maneira surpreendente: sim, K. estava sendo esperado! É o primeiro dom voluntário da graça: mas contém uma punição. Pois o Castelo retorna o telefonema acrescentando: “K. tem permissão de ficar, mas o seu contrato foi um lamentável engano, não há necessidade de niveladores, portanto ele pode ficar, mas não pode participar da vida da aldeia. K. desespera-se pois embora presente não participa, sua existência não tem sentido. Eis-nos nas últimas linhas do romance inacabado. Mas uma anotação aponta-nos um fim: K. não tem o direito de compor a aldeia, mas considerando-se certas circunstâncias, ser-lhe-á permitido permanecer, isolado e excluído, até a morte. Em “O Processo” o céu instaura litígio espiritual contra o homem. Em “O Castelo” o homem instaura litígio contra o céu. São as conseqüências da lógica da predestinação. O homem em Kafka, recusa-se e revolta-se contra um misterioso sistema de seletividade divina. Acusa Deus, como Ivan Karamazov que entendia a predestinação como uma piada blasfema e absurda. Não parece que esse Deus deseja a participação do homem em sua própria redenção. No abismo entre o Deus tirânico dos crentes da predestinação como Santo Agostinho e Calvino, e o homem desavisado de sua condição metafísica, Kafka sonda o caminho da graça. No seu último diário, pouco antes de morrer, ele copiou as seguintes palavras de um sermão de Lutero:

“Deus não é inimigo dos pecadores, mas somente da soberba dos descrentes que não admitem os próprios pecados nem procuram o apoio de Cristo, mas que procuram temerária e estupidamente a purificação em si mesmos”.

A estas palavras, Kafka contrapôs o seguinte aforismo:

“Quem procurar não encontrará, quem não procurar será encontrado!”

Quando li este aforismo, imediatamente, lembrei-me das sábias palavras do filósofo católico Baisle Pascal:

“Consola-te: não me procurarias se já não tivesses encontrado!”

sexta-feira, 1 de agosto de 2008


No fim tu hás de ver que as coisas mais leves

são as únicas que o vento não conseguiu levar:

um estribilho antigo

um carinho no momento preciso

o folhear de um livro de poemas

o cheiro que tinha um dia o próprio vento...


Mário Quintana

A mais difícil simplicidade!...


Na minguada constelação da poesia brasileira, Mario Quintana é astro de primeira grandeza, muito embora haja quem conteste, porque seu brilho surgiu tão remoto e distante que foi considerado pequeno e fugaz, como uma “supernova” poética. Eu, particularmente, o prefiro a qualquer outro - mesmo em detrimento dos meus conterrâneos (Manuel Bandeira e João Cabral) que desde sempre refulgem que nem os bois do carro-do-sol de Apolo Auriniente, divindade estética da música e da poesia. O que se deu com Quintana é o que se dá com tantos outros à margem dos acontecimentos, onde a chancela das edições provincianas é quase sempre uma fatal condenação ao silêncio e ao esquecimento. Mas quase!... Para escapar a esta triste fatalidade, e obter projeção, Quintana teve a sorte de ser reeditado no Rio de Janeiro (sob os auspícios de Manuel Bandeira), de onde, afinal, pôde brilhar em todo o seu esplendor, ofuscando assim as critiquinhas que queriam reduzi-lo ao tamanho delas próprias. A poesia de Quintana é feérica e se caracteriza por rápidos e pequenos sortilégios, feitiços ou simpatias verbais que funcionam e impressionam pela difícil simplicidade de sua forma e conteúdo. Ternura, melancolia, intimismo, misticismo, ironia, ingenuidade, humor e erotismo são ingredientes de sua quintessência poética. Quem nunca desejou, ou mesmo supôs-se capaz de imitar, e até superar Mario Quintana, para logo surpreender-se frustrado? Eu já!... Desde então abdiquei da vaidade de ser poeta. A facilidade com que se exprime é ilusória: nada aí está ao alcance dos nossos dedos, por mais próximo que pareçam. Quintana é um enfeitiçado das letras, dono de um condão semântico encantatório que ele sabe manipular com o mínimo de palavras. Com tais poderes, seus versos sempre conseguem aquele prodígio “lorcaniano” de significados, próprio da grande poesia. Seus símbolos e termos são quase sempre diminutos, estreitos, lacônicos, e no entanto polissêmicos, multívocos. A sua lírica é, como dizia Drummond, uma tradução para o simples de muitos mistérios. Com efeito, o monumental e misterioso “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust, não pôde encontrar no idioma português outro tradutor mais competente. À parte as traduções, basta uma leitura, mesmo apressada de algumas de suas obras como “As Canções”, “O Aprendiz de Feiticeiro”, “O Sapato Florido”, “A Rua dos Cataventos”, “A Cor do Invisível” ou o “Carderno H”, para deixar claro o equivoco de certos telescópios críticos ao considerar menor essa imensa estrela poética. Quisera eu saber como fazer metade dessa poesia doce e lúcida, debochada, genial e grandiosa, apesar da humilíssima constituição, que está para muito além de qualquer academia, qualquer título.