sábado, 14 de junho de 2008

Literatura casca grossa


James Joyce certa vez confessou a um amigo: "Quando jovem, uma das coisas com as quais não conseguia me acostumar era a distância entre a vida real e a literatura". Qualquer leitor que sabe apreciar boa leitura percebe a diferença. Joyce passou toda a sua carreira tentando aproximar essas realidades e, sem perceber, acabou revolucionando a ficção do século 20. Ele trouxe sua própria vida para a literatura. Nascido nos arredores de Dublin, em 1882, James Augustine Aloysius Joyce era o mais velho dos dez filhos do casal John e Mary Jane Joyce. O pai, beberrão espirituoso e irascível, era um provedor negligente. A mãe, católica devota, impotente diante das adversidades da vida, assistiu resignada e contrita à ruína da família. Em 1902, ao terminar seus estudos na Trinity College, em Dublin, Joyce achava que já sabia o bastante para dispensar a religião, a família, a terra natal e a coroa britânica. A literatura seria sua vocação e sua passagem para a imortalidade. No final de 1904, Joyce deixou a Irlanda em direção ao continente, levando na cabeça todas as histórias que um dia iria escrever. Ao lado de Nora Barnacle, jovem camareira da região de Galway, que ele conheceu num hotel de Dublin, o escritor andou por cidades como Pola, Trieste, Zurique, Roma e Paris. Para sustentar a esposa e os dois filhos, Joyce trabalhava como professor ou escriturário. Esse período pode ser definido como uma sucessão de crises. Aliás, toda a sua vida foi uma crise intermitente, que só terminou com sua morte, quando refugiado na Suíça, praticamente cego, separado da filha esquizofrênica que ele adorava e que ficou sozinha, internada num hospício na França sem poder deixar o país recém-ocupado pelos alemães. Uma biografia de partir o coração, a bibliografia porém.. Seu primeiro livro de ficção, "Os Dublinenses" (1914), contém 15 contos, pobres de enredo mas ricos em linguagem e força evocativa. "Retrato do Artista Quando Jovem", escrito dois anos mais tarde, traz um relato lingüisticamente complexo, mas, ao mesmo tempo, bastante objetivo sobre a vida de Stephen Dedalus - o próprio escritor - desde seu nascimento até a partida de Dublin. O livro teve pouca saída, mas seu trabalho já havia atraído a atenção de vários artistas de vanguarda, incluindo o poeta americano Ezra Pound, que acreditava na necessidade de uma renovação completa na arte, na poesia e na música. Os aliados de Joyce uniram forças para promover sua literatura experimental. O escritor irlandês, é claro, não os decepcionou. "Ulysses" começou a ser escrito em 1914. Alguns trechos da obra apareceram em publicações como "Egoist", na Inglaterra, e "Little Review", nos Estados Unidos, até que o serviço dos Correios, alegando obscenidade, resolveu confiscar três números da revista, contendo fragmentos escritos por Joyce. Seus editores tiveram de pagar uma multa de US$ 100. A ameaça de censura apenas serviu para aumentar a curiosidade sobre o novo livro. Antes mesmo de "Ulysses" ser publicado, em 1922, os críticos já comparavam as inovações literárias de Joyce ao impacto causado pelos trabalhos de Einstein e Freud. Toda essa comoção tinha um motivo claro. Em primeiro lugar, Joyce dispensou a maior parte das técnicas de narração empregadas na ficção do século 19. O livro não tem uma trama distinta -uma sucessão de obstáculos que o herói deve enfrentar na busca de um final feliz. Não existe um narrador onisciente, pronto para guiar o leitor, descrevendo os personagens e seu ambiente, fornecendo detalhes, resumindo os acontecimentos e explicando, aqui e ali, o significado moral da história. Talvez a descrição mais clara e concisa da técnica usada pelo escritor seja a do crítico Edmund Wilson: "Em "Ulysses", Joyce usou as palavras de maneira exaustiva, precisa e direta para retratar a nossa participação na vida - ou melhor, como ela se apresenta a nós, em cada momento vivido". Depois de "Ulysses", a literatura do século 20 passou a dispor de um ponto de referência. Com múltiplas vozes narrativas e um jogo de palavras extravagante, o livro é um verdadeiro dicionário de estilo para os escritores que tentam descrever a contemporaneidade da vida. Existe um pouco de "Ulysses" nas obras de escritores como William Faulkner, Albert Camus, Samuel Beckett, Saul Bellow, Gabriel García Márquez, Thomas Phyncon e Toni Morrison. Todos, com exceção de Joyce, receberam o Prêmio Nobel de Literatura. Mas o único autor que ousou superar o alcance enciclopédico de "Ulysses" foi o próprio Joyce. Apesar do volume e da complexidade, dos neologismos e dos jogos verbais, "Ulysses" ainda é ninharia perto do que viria depois. No intuito obsessivo de se superar, o escritor dedicou dezessete anos de trabalho a "Finnegans Wake", escrito com o objetivo de retratar a vida adormecida de Dublin com a mesma minúcia com que o escritor tinha explorado, em "Ulysses", o lado desperto da cidade. Joyce resolveu então inventar uma linguagem que imitasse a experiência dos sonhos. Hoje em dia, apenas os joyceanos mais dedicados se dispõem a enfrentar o obscuro "Finnegans Wake". Quem sabe, daqui a um século, seus leitores conseguirão alcançá-lo. Ou, o mais provável, ninguém mais queira ouvir falar dos livros de James Joyce.

Um comentário:

DIARIOS IONAH disse...

seu comentario eh uma partida urgente para as paginas do Joyce!