sexta-feira, 9 de maio de 2008


Flush não é um cão qualquer. Mesmo antes de ser retratado por Virginia Woolf, já fazia parte da nobre linhagem de animais literários, que remonta a Argos, cão de Odisseu, ou Quincas Borba, cão homônimo de filósofo de Machado de Assis, ou ainda a trágica e sublime cadelinha Baleia de Graciliano Ramos. Flush pertenceu à poeta inglesa Elizabeth Barrett, posteriormente Browning. A esse cocker spaniel dourado, Barrett dedicou dois poemas. A ele, a poeta ainda deve os trechos mais realistas de "Aurora Leigh", seu grande romance em versos.
Na década de 40 do século 19, bairros aristocráticos como Mayfair desfrutavam a incômoda proximidade de cortiços e maltas de criminosos. Bastava uma ligeira distração das senhoras para que seus totós fossem sequestrados por esses vizinhos. Foi o que ocorreu com Flush, não apenas uma, mas três vezes. Numa das ocasiões, Barrett se viu obrigada a meter-se num cupê para negociar o resgate com os malfeitores.
Seria como se, hoje, uma socialite carioca aparecesse num Audi para palestrar com o chefão do tráfico no morro do Borel. Até então Barrett nunca pusera os pés num bairro miserável. Ali, num único cômodo, construído como um estábulo, viviam até três famílias. O tifo grassava. Dessa experiência nasceu o cortiço londrino que a autora forjou em "Aurora Leigh".
Woolf, por seu turno, narra o episódio do roubo de Flush, como vários outros da vida da escritora. Elizabeth Barrett já era famosa quando conheceu o poeta Robert Browning. Tinha 40 anos e vivia reclusa, sob o jugo do pai tirânico. Escreveu sonetos ao amado. Disse para o pai que se tratava de uma tradução sua para versos de Luís de Camões. O pai engoliu a lorota, e os poemas, talvez os melhores de sua lavra, ganharam o título de "Sonetos Portugueses". O casal foi depois obrigado a fugir para a Itália. A originalidade da narrativa de Virginia Woolf residiria em mostrar esses eventos pela ótica de Flush.

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