quarta-feira, 29 de julho de 2009

Épico Brasilensis

Retrato de Euclides da Cunha - Cândido Portinari.

É impossível não admirar Euclides da Cunha. Seja pela sensação de fascínio, seja pelo assombro ou pela impressão de absurdidade, a admiração sempre sobrevém. É um pensador profundo, um artista de primeira ordem, um intelectual honesto, mas, sobretudo, um profeta. Grandes escritores são inopinadamente profetas, porque, a despeito do tempo e do lugar, realizam sua obra em dissonância com as perspectivas e expectativas vigentes, mas em consonância com o atemporal. Foi o que Euclides da Cunha fez em “Os Sertões”. Com um mérito muito maior do que qualquer outra saga depois de “Os Lusíadas”, a narrativa de “Os Sertões” incorpora o ressurgimento do épico na língua portuguesa, e de uma forma insólita. Trata-se de um poema geopolítico, histórico, jornalístico, sociológico, enciclopédico – enfim, é inapreensível a vastidão dos seus aspectos. E este caráter de magnitude é essencial sob duas proposições: primeiro, como sugestão, óbvia, do estilo épico e, depois, como meio de comunicar um sentido de História. Com alguma reflexão torna-se evidente que a imensidão é a liberdade mínima para o gênio poético de Euclides, bem como uma característica tanto de sua vida pessoal quanto de sua concepção de arte. Em toda sua trajetória, seja no brilhantismo precoce, seja nas aventuras escolares e militares, seja na militância jornalística ou acadêmica, seja no casamento desastroso ou na obra literária – breve, mas descomunal – a impetuosidade apaixonada é notória. Guimarães Rosa, ele mesmo um escritor de potência demoníaca, admitiu em crítica: “Jamais ousaria medir forças com Euclides da Cunha. Ele é como um vento tempestuoso, que fustiga quem o encara!...” Só um poeta seria capaz de mensurar o poder de outro. A obra euclidiana, de fato, tem elementos suficientes para resistir a modas e gostos de qualquer tempo. Embora todos os seus trabalhos sejam de alto nível, “Os Sertões” é sua máxima realização. “O maior livro do Brasil”, declarou o crítico Samuel Putman, enquanto o poeta Robert Lowell, numa nota introdutória à tradução americana, fez questão de situá-lo entre “Guerra e Paz” de Tolstoi e “Moby Dick” de Melville. Particularmente, considero essa designação justíssima, porque assim como os respectivos gênios literários da Rússia e da América, Euclides da Cunha introduziu a literatura brasileira no átrio seleto e elevado dos titãs. Reparem que a grandiosidade do épico está em descrever, analisar, explorar e acumular os dados da atualidade e da introspecção. De todas as representações da experiência às quais a literatura almeja, de todas as reformulações da realidade propostas pela linguagem, as do épico (mais do que o romance) são as mais eloquentes e incisivas. As obras de Virgílio, Dante, Camões, Milton, Sthendal ou Thomas Mann documentam, em amplitude, a nossa percepção de mundo e do tempo. São como primas-irmãs da História. Neste sentido, “Os Sertões” é paradigmático. Seu texto divide-se em três partes: “A Terra”, “O Homem” e “A Luta”. Nas duas primeiras o autor faz um estudo geofísico e etnológico tão minucioso quanto permitiria a ciência da época, e tão poético quanto permitiria sua força estética. Tem falhas, naturalmente: ele tenta ver a realidade pelas lentes do positivismo e do idealismo alemão, mas a como a verdade se impõe a quaisquer “ismos”, Euclides muda radicalmente de tom e perspectiva. E no decorrer do texto todas as convicções científicas, filosóficas, republicanas vão desmoronando. Limpo dos preconceitos, ele procura demonstrar que a jagunçagem rebelde e fanática não é um conluio criminoso, mas o efeito-colateral de uma sociedade isolada que surge à revelia da ordem, no descaso do Estado, esquecida da civilização. Aí se destaca o timbre da honestidade intelectual, porque além da coragem de mudar de opinião em pleno texto, ele primou pela observação direta em confronto com testemunhos levianos. Basta mencionar, como exemplo, o cuidado que ele teve em desmentir um boato difundido na imprensa por Olavo Bilac, segundo o qual “o patife do Antônio Conselheiro havia sido o assassino da própria mãe e da esposa”. No capítulo IV, da segunda parte, Euclides revela que a mãe de Antônio Conselheiro havia morrido quando ele ainda era criança e que a esposa havia fugido com um policial para Salvador. Naquele tempo já existia imprensa marrom!... O tom épico se estende da primeira à última página, mas atinge o ápice na terceira parte, que descreve “A Luta”. Nela vemos uma mescla de Homero e Heródoto, ou seja, o cotejo da realidade com o mito. Não a toa, “Os Sertões” teve mais de cem edições em português, dezoito em espanhol, doze em inglês, nove em francês e cinco em alemão. Entre seus fãs confessos e ilustres estão Stefan Zweig, Hermann Hesse, Gabriel Garcia Márquez, José Saramago e os, continuadores, Mario Vargas Llosa e Sándor Márai. Este último descreveu magistralmente a dura realidade sertaneja (Veredicto em Canudos) sem nunca ter pisado no Brasil, enquanto o primeiro engordou a narrativa (A Guerra do Fim do Mundo) dando uma pitada de realismo mágico. Ah! Não se pode esquecer que Jorge Luis Borges, no conto “Três Versões de Judas” também fez referência à pessoa de Antônio Conselheiro. Nestas circunstâncias constatamos que, quando o público brasileiro não mais quiser, ou não souber apreciar o épico da “Tróia de taipa”, a memória de Euclides da Cunha já estará devidamente honrada.

5 comentários:

fatimapombophotos disse...

com certeza Cristiano, muito bem escrito este artigo sobre o Euclides da Cunha, agora alguns brasileiros vão ler a obra dele, porque os gringos assinaram embaixo a qualidade do cara!

Badá Rock disse...

Eu nem nunca li, mas lerei em breve.

Christiano disse...

Obrigado, Tamar e Badá, pela visita.
Leiam vale a pena. As pessoas costumam reclamar da goegrafia poética da primeira parte: o texto é tão árido quanto vasto, e as palavras são ásperas com as pedras e a canícula da caatinga (comentário de Gilberto Freire). Em parte é verdade, mas eu usei um truque: lia como se estive rastreando o Sertão com satélite. Garanta que a sensação é xatamente esta. Aliás, pensando bem, nem o Google Earth consegue oferecer imagem melhor.
E como vcs moram na Bahia, vai haver, certamente, uma familiarização com a paisagem. Ah, Badá, um detalhe: essa primeira parte foi escrita quando ele estava cruzando a chapada Diamantina.
Não preciso dizer mais nada.

helentry disse...

Olhe, dois membros de meu grupo de leitura estão praticando a peripécia desta viagem.Mas eu não me atrevia.Já conheço trechos do livro e sempre adiei esta leitura. Porém você, como sempre, conseguiu despertar meu interesse.Será que eu teria tempo de ler até 20 de setembro?Abraços e obrigada, geniozinho.
Elô

Unknown disse...

Parabéns,amigão.Você está a cada dia melhor.