quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Descalça e sozinha entre a poesia e a santidade


Ela era uma das mulheres mais belas e cortejadas da cidade espanhola de Ávila, era intelectualmente sofisticada, tinha cara e nome de rica, chamava-se Teresa de Cepeda y Ahuamada Saavedra, e de fato era rica – sobretudo em espírito. Leitora voraz, alimentada tanto pelo espírito aventureiro das baladas medievais e dos romances de cavalaria – chegando mesmo a escrever um deles – como pelo espírito exaltado da Flor Sanctorum, das lendas de santos (também desejosa de torna-se poeta e santa), Teresa rejeitou todos os pretendentes e esquivou-se da medíocre segurança doméstica e matrimonial para escolher o caminho da aventura espiritual. Um dia, estarreceu-se com as palavras evangélicas que ouviu durante uma missa: “Vigilate itaque, quias nescitis diem neque horam” – “Velai, pois não sabeis nem o dia nem a hora”. É o fim da parábola das virgens sábias e das virgens loucas: das virgens sábias que prepararam as lâmpadas para as núpcias, e das virgens loucas que esqueceram o óleo, e as lâmpadas apagaram-se, e caiu a noite, e o noivo celeste não as reconheceu; é o evangelho que hoje se reza durante a missa em honra e memória da poeta e mística Santa Teresa d’Ávila.
Sacudida pela poesia e santidade daquele texto, Teresa decidiu não mais pertencer ao número das virgens loucas; então se retirou do século para entrar num mosteiro carmelita, onde, livre e descalça, começou a escrever. De imediato, a virgem sábia foi considerada como louca. Todavia sua loucura não estava no ato de converter-se em monja (coisa corriqueira na época), mas na atitude que essa conversão ensejou: Teresa d’Ávila tornou-se, através de sua poesia, na mulher mais desafiadora e crítica do seu tempo. Seu primeiro alvo foi a própria Igreja; ainda noviça enviou uma carta ao Papa Pio XI denunciando o grande inquisidor Quiroga como uma prostituta assassina e mitrada. Com efeito, foi presa e processada. Ela, porém, não se deixava dobrar, continuou escrevendo e afrontando o inquisidor, os bispos e até o rei Felipe II, de quem era prima distante. Reunindo em si a imaginação de Dom Quixote e a inteligência prática de Sancho Pança, e mais ainda: o humor superior e o gênio literário do criador dessas personagens imortais, ela iniciou a carreira poética de missionária solitária, visionária extática e peregrina fugitiva que cruzou a Espanha deixando atrás de si um rastro de 32 conventos - aos quais convergiram todas as virgens sábias de sua época.
Capturada em Toledo, continuou escrevendo as obras místicas que a consagrariam como a primeira prosadora da literatura de língua espanhola. Escreveu inúmeras cartas aos grandes do mundo e às autoridades religiosas de crenças diversas; cartas cheias de uma coragem indomável, cheias de conselhos sábios, de um humor surpreendente e, sobretudo, de perguntas desconcertantes: foi ela quem fez o filósofo alemão Gottfried Leibniz desistir de ser ateu ao propor-lhe uma pergunta suprema - Por que antes existe o ser e não o nada?... – Leibniz jamais encontrou uma resposta, todavia em face da pergunta concluiu que qualquer declaração atéia, de sua parte, seria uma imponderação evasiva e leviana.
Ainda em vida, Teresa teve um público considerável, foi lida por Cervantes e o dramaturgo Lope de Vega, pelo pintor El Greco e o igualmente poeta e santo Juan della Cruz – com quem manteve extensa correspondência. E como, naquele tempo, o espanhol era a língua universal, sua obra foi traduzida para quase todas as línguas ocidentais. Foi a ela que Goethe atribuiu a moderna redescoberta da consciência individual, isto é, da alma humana como um valor em si mesma. E isso devido ao texto de Alma y Dios, Sola com em Solo (Alma e Deus, sozinha com o Único) – extenso poema que, no século XIX, inspiraria profundamente o existencialismo filosófico de Kierkegaard. Avaliar todo o impacto da obra literária de Teresa d’Ávila nos levaria longe, mas aqui ainda cabe lembrar a estirpe de mulheres igualmente poderosas e santas que ela inspirou, uma linhagem de Teresas, discípulas suas, imitadoras de Cristo, que ao longo dos séculos vêm marcando drasticamente a história espiritual da humanidade: a imaculada e precoce Therese Martin ou Santa Teresa de Lissieux, a mártir e filósofa Santa Edith Stein ou Teresa de Israel; e a iluminada e sempre amada Agnes Gonxha Bojaxhiu ou Madre Teresa de Calcutá.
Em seus diários, Dostoievski escreveu que através de Teresa d’Ávila entendeu “que os santos podem não ser infalíveis, mas são resolutos. E não são reacionários, modernos, restauradores ou revolucionários, pois representam o eterno. E são loucos sim, mas absolutamente livres, e sabem que a espada do espírito é mais cortante que o aço.”
Além da fé, do amor e da esperança, podemos dizer que a liberdade, o intelecto, a paixão, a audácia e influência espiritual de Teresa d’Ávila são provas incontestes de sua santidade.

3 comentários:

Anônimo disse...

Confesso que, de leituras santas, só conheço São Tomás de Aquino. Vc agora me acende a vontade de ler os textos de Santa Teresa de Ávila. Obrigada pelo bom serviço que vem nos prestando, abrindo a nossa curiosidade e levando-nos a alcançar maior cultura.

Christiano disse...

Rosinha, conhecer são Tomás já é um grande passo rumo a descoberta da grande riqueza espiritual do ocidental, não apenas cristã, haja visto que o homem tinha uma cultura enciclopédica e uma alma libérrima que em tudo sabia discernir o be do mal!!!...
Santa Teresa é do mesmo time, estrela de primeira grandeza, com a vantagem de ser poeta (das boas), portanto precisa ser descoberta.
Sugiro que leia as memórias dela.
Impossível ficar indiferente!

PS: Volte sempre, Rosinha!

Unknown disse...

Amei tudo que li sobre Santa Teresa!Assino as palavras de Rosinha!è sempre um prazer ler seus textos!