quinta-feira, 5 de junho de 2008

A Filósofa das Despedidas


Iris Murdoch foi mais uma das grandes contribuições que a Irlanda deu à literatura universal – ao lado de Oscar Wilde, Bernard Shaw e James Joyce. Como a maioria dos seus compatriotas, ela escreveu em inglês, enriquecendo assim uma língua já tão saturada de arte e poesia. Mas antes de ser artista e poeta, Iris quis ser filósofa, pois desde a adolescência tinha o propósito filosófico de, esteticamente, desafiar Platão, e assim anular o anátema que ele havia lançado sobre todos os poetas desde Homero. No entanto, apesar de sua exuberância intelectual e do forte ímpeto narrativo, acabou fracassando. Em tal empreitada, Iris Murdoch havia estabelecido para si os modelos mais elevados: Dante, Shakespeare, Tolstoi, Jane Austen, Dickens e Henry James. Diante de tais padrões, cumpre-nos perguntar, quantos escritores sobreviveriam? Ela sobreviveu, mas mesmo assim fracassou, pois se nem Homero conseguiu arranhar o incomensurável poder argumentativo de Platão, quem mais poderia fazê-lo? Todavia, que ninguém a subestime, pois qualquer escritor, poeta ou filósofo que se propõe a encarar tamanho desafio sofre, necessariamente, uma derrota honrosa. E o espólio desta luta não me deixa mentir: Iris escreveu 26 romances magníficos, dentre os quais ninguém sabe dizer qual o melhor. Eu só tive a sorte de ler três – O Sonho de Bruno, O Príncipe Negro, e O Mar, o Mar -, e foi o bastante para vislumbrar o seu gênio. Em todos os seus textos, Iris incansavelmente demonstra que só a literatura pode nos permitir uma percepção de todos os aspectos da realidade, que não seríamos capazes de ver, se não nos fossem por ela indicados. O grande paradoxo disso tudo é que a sua narrativa, quase romanesca ou fantástica, depende de magia, de intrusões góticas e paixões absurdas que nem sempre terminam bem. Iris Murdoch sofreu muito por amor, de modo que sempre fez seus personagens sofrerem o mesmo. Sua obra é toda povoada por jovens ardentes, violentos, ladinos e obsessivos, que perseguem ídolos narcisistas, dotados de muito charme, mas pouco controle da realidade, e que são céticos hesitantes. Nela há também adultos, freqüentemente, frustrados e raivosos, que se apaixonam subitamente. E há os magos de Murdoch, judeus carismáticos, os “deuses estranhos”, conforme ela própria, certa vez, os definiu. Nenhum desses tipos permite grandes processos de individuação, em termos de personagem, mas encaixam-se bem nas profundíssimas reflexões que Iris faz acerca do erotismo, da vivência amor e, sobretudo, da triste vivência do final do erotismo e do amor. Por isso ela é a grande filósofa das despedidas. E como Platão, Iris consegue filosofar com poesia. Seu poema “Carta do Hades” traz um dos melhores momentos da literatura moderna em que é invocado final de uma paixão. Sempre que leio lembro-me de Swann, em Proust, exclamando: “E pensar que sofri tanto por uma mulher que comigo não condizia, que sequer era meu tipo!”. Lembro também de Jack Burden, no romance de Robert Penn, Todos os Homens do Rei, que despede-se, em devaneio, da ex-esposa: “Adeus, Lois, e perdôo-te por tudo que te fiz!” (Chico Buarque usou essa frase numa de suas lindas canções). Mas nada se compara mesmo a obra de Iris Murdoch, que num dos seus primeiros romances diz: “Deixar de gostar de alguém é uma das grandes experiências humanas; a gente parece ver o mundo com novos olhos”.

2 comentários:

Unknown disse...

Tenho deler esta escritora! Você atiçou minha curiosidade!

Anônimo disse...

Vc nao considera becket digno de figurar ao lado dos grandes da Irlanda? E swift? prefiro crer que foi esquecimento...

Ótimo texto. Todos ótimo textos.