quarta-feira, 6 de junho de 2007

A Consciência do Mundo

Se houve no século XX um escritor que personificasse a imagem romântica do gênio ou artista literário, esse foi Thomas Mann. Ser artista é uma missão no sofrimento. É querer arrancar o mundo da inconsciência, sabendo ao mesmo tempo que sem ela a beleza não existiria. E é esse paradoxo que provoca a arte como consciência do mundo. Em Mann, o espírito e a consciência que o fazem artista também não o deixam viver a felicidade dos que ele observa. É como se nele houvesse uma contradição entre ser artista e viver.
Parece um exagero de sensibilidade, eu sei. Mas há uma explicação.
Thomas Mann nasceu no dia 06 de junho de 1875, na cidade livre de Lübeck, que, como Hamburgo e Bremen, mantinha a sua soberania no interior do II Reich alemão. O pai era um próspero comerciante, que veio a ocupar vários cargos públicos, incluisve o de senador, e a mãe, a belíssima Júlia da Silva Bruhns-Mann, brasileira, nascida em Parati, era filha de um alemão radicado no Brasil e de uma brasileira de origem portuguesa. Thomas é o segundo filho. O mais velho, Heinrich, virá também a ser um escritor de talento. Seguem-se duas irmãs, Júlia e Carla - ambas irão suicidar-se porque queriam ser atrizes e os pais não deixaram- e um irmão, Viktor Mann, autor da crônica familiar "Wir Waren Fünf" ("Éramos Cinco").
Embora fossem uma família estável e aparentemente comum, os Mann não eram felizes. Tudo neles era uma aparência. As relações eram pouco sinceras e, não raro, fundamentadas em sentimentos perversos. Heinrich, por exemplo, desejava ardentemente a irmã Carla (como revelam as cartas trocadas entre ambos). Dona Julia era uma mãe dominadora e, ao mesmo tempo, uma esposa pouco fiel. E Thomas, já na juventude, vivia o terrível conflito da bissexualidade: amava a namorada, mas era apaixonado pelo colega da escola de música!... Enfim, uma família quase normal.
Os conflitos que essas peculiariedades geravam, foram atenuados com o passar dos anos, quando cada um tomou seu rumo na vida, mas não sem antes deixar-lhes marcas profundas. Marcas que encontrariam expressão numa grande obra literária, sobretudo, na de Thomas Mann.
Ele estreou na literatura aos 19 anos, com uma novela de desilusão amorosa ("Queda") que lhe abriu de imediato as portas para os círculos artísticos de Munique. Dois anos depois surge a narrativa "O Pequeno Senhor Friedmann", que pode ser considerado o seu primeiro trabalho realmente significativo, pois é nele que já se percebe a existência de um conflito entre o espírito e a vida: a condição trágica que é sua marca e que dá o tom de clássicos como "Morte em Veneza", "A Montanha Mágica", "José e seu Irmãos", "Doutor Fausto" e "Os Bruddenbrooks" (retrato da decadência familiar). Por uma razão ou outra (por velhice, por deformidade, por doença, por repressão, por sensibilidade ou por talento artístico), os personagens de Mann se vêem fora do mundo, mas com a capacidade de ver o mundo de fora. É a margem que lhes garante a distância, o foco e a consciência que os outros, que "vivem simplesmente", não podem ter. No caso do artista, é a alteridade que lhe permite apreciar a beleza do mundo que o cerca. É a condição da sua arte: para ver a vida, é preciso estar fora dela. Para criar a beleza, é preciso desejá-la.
E de tanto desejar Mann, acabou criando beleza - provavelmente, os romances mais belos, ricos e monumentais já escritos no século XX.
Talvez isso explique porque hoje ele é pouco lido. A despeito de sua grandiosidade, a influência de Thomas Mann sobre escritores alemães do pós-guerra é paradoxalmente reduzida, se lembrarmos nomes como o de Franz Kafka, com incontáveis seguidores mais ou menos epigonais (e não só na Alemanha), Robert Musil, com o romance "O Homem sem Qualidades", ou ainda Alfred Döblin, que tem em Günter Grass um discípulo confesso. Seria a extraordinária envergadura enciclopédica dos romances de Mann, a incomparável erudição, que gera por vezes a impressão de monumentalidade extemporânea, como se "2.500 anos de cultura", para glosar uma sarcástica observação de Brecht, mirassem o leitor "de cima para baixo"?
Não sei. Só que tenho muito medo de que Mann caia no esquecimento. Uma vez ele disse que, hoje em dia, um romance precisa ser mais que um romance: - O romance do século XX tem que ser, ao mesmo tempo, romance, ensaio, tratado científico, e também obra de história e reportagem.
Sua obra é então tudo isso. É muito mais do que um belo romance: é o próprio Mann, é a sua consciência do mundo.

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