sexta-feira, 8 de junho de 2007

Senhora das Lembranças


A primeira mulher a ser eleita em 1980 para a Academia Francesa nasceu com o nome de Marguerite de Crayencour, no dia 8 de junho de 1903 em Bruxelas, filha de mãe belga e pai francês. Antes de morrer "no campo de honra das mulheres" de uma febre puerpural consecutiva a seus partos, sua mãe, Fernande de Cartier de Marchienne, recomenda que não se impeça a menina de se tornar religiosa se ela assim quiser. Ingressando na literatura, Marguerite acredita ter atendido o desejo de sua mãe. Michel, seu pai, que é mais do que um pai, um pedagogo, um confidente, um amigo, não é homem de fazer a filha ingressar em qualquer ordem que seja. Esse anticonformismo deixa-lhe como herança o gosto pela vida errante, ilustrado nesse adágio que ela nunca esquecerá: "Só se pode estar bem em outro lugar"; além de uma grande cultura, que divide com ela, assim como sua biblioteca.
Em 1919, ele financia pessoalmente o Jardin des Chimères (Jardim das Quimeras), poema dialogado que a filha compôs sobre a lenda de Ícaro. Marguerite tem então apenas dezesseis anos; ela nunca havia colocado os pés na escola; mas nem por isso deixará de obter o baccalauréat (certificado de conclusão do segundo grau). Juntos, pai e filha escolhem para ela um pseudônimo que é o anagrama de seu sobrenome: Yourcenar. Sua primeira obra publicada por uma verdadeira editora é Alexis ou o Tratado do Vão Combate, carta de ruptura escrita à mulher por um homem que prefere os homens, pudico pequeno texto que reforça, na linhagem do escritor André Gide, a liberdade das preferências sexuais.
Nesse meio-tempo morre seu pai, em 1929, e a jovem Marguerite vai conhecer os anos mais intensos de sua vida de mulher. Ela ama, escreve, perambula pela Europa, que se prepara para o cataclisma sem ter consciência disso. Esses anos serão sobretudo os anos de uma paixão impossível por um homem que não a ama e que, como Alexis, prefere os homens. Feux (1936) é produto dessa crise amorosa. Menos conhecido do público do que as obras-primas da maturidade, esse poema em prosa mistura a vida e seus símbolos do amor absoluto, a evocação dos grandes mitos de Antígona, Fedra ou Maria Madalena com o lamento pessoal do amor e da dor. Lindo, lindo, lindo.
Seu grande triunfo foi "Memórias de Adriano", publicado em 1951, uma autobiografia fictícia através da qual ela se consagra ao lado de Proust como a mestra e senhora da arte de recordar (ainda que por lembranças alheias). Marguerite Yourcenar já havia produzido e destruído, desde a idade de vinte anos, vários esboços desse romance ambicioso que faz reviver na primeira pessoa um imperador romano do século II e do qual em 1949 só restava um simples fragmento. Em alguns meses ela reescreve as memórias desse soberano esclarecido que estimulou as artes e melhorou as condições de vida dos escravos.
Através dele, ela sonha com um homem de Estado ideal, capaz de estabilizar a terra. E dá a esse grego de cultura e ambição, que protege as árvores ameaçadas, suas próprias preocupações ecológicas. Ela evoca um homem que constrói sua felicidade "como uma obra-prima", mas que a paixão pelo belo Antinous e a dor de sua perda vão transformar numa vertigem de imortalidade a glória do ser amado. Ela divide com ele uma sabedoria inspirada nas doutrinas orientais que consiste em se preparar para a própria morte, em perceber o seu perfil, e finalmente entrar nela "com os olhos abertos". Traduzido, elogiado e comentado, Memórias de Adriano obtém um sucesso mundial.
A Obra em Negro, publicado dezessete anos mais tarde, durante os acontecimentos de maio de 68 na França, é também fruto de uma longa gestação (é o meu predileto). Reescrito a partir de uma primeira novela publicada em 1934, esta é "em duas palavras a história de um homem intelectual e perseguido; isso se passa por volta de 1569 e poderia ter se passado ontem, ou se passar amanhã". Seu herói fictício, Zenon, filósofo, médico e alquimista do século XVI, possui mais realidade para sua criadora do que muitas criaturas de carne e osso. Yourcenar conta que conversava com Zenon todas as noites, e até pedia conselhos a ele.
Porém, seu projeto mais ambicioso, esse também inspirado nos sonhos de sua adolescência, será concretizado nos três volumes do Labirinto do Mundo, memórias de um gênero novo onde a escritora explora sua filiação e a história de seus ancestrais e pais. Os dois primeiros volumes fecham-se, como duas conchas, sobre a visão de uma pequena Marguerite de alguns meses que dorme sobre os joelhos de sua ama. No terceiro tomo ela mal chega à puberdade. Publicado a título póstumo, este último não será terminado.
Antes de morrer, no dia 17 de dezembro de 1987, na sua ilha americana, ela voltou a viajar, a "dar a volta à prisão", na companhia apaixonada de um jovem americano de trinta anos, Jerry Wilson. Quando ele morre prematuramente de AIDS, ela não tem mais forças para continuar sozinha por muito tempo, ela que gostava de dizer que só se morre de desgosto. Ela havia escrito profeticamente na juventude: "Solidão... Eu não acredito como eles acreditam. Não vivo como eles vivem. Não amo como eles amam... Mas morrerei como eles morrem."

Um comentário:

Unknown disse...

Cada texto seu é uma aula! Ótimas informações e visão da escritora , amigo! Adorei tudo! Que mulher inteligente! Terá conseguido um pouco de felicidade? Acredito que sim! Mas o que ser´mesmo felicidade?!