terça-feira, 28 de agosto de 2007

A Alma do Mundo


Goethe, já idoso, disse uma vez que seus escritos não podiam se tornar populares, não se destinavam às massas, mas aos indivíduos dotados de aspirações e propósitos semelhantes aos seus!... Parece uma afirmação arrogante, mas não é.
Forças da natureza, quando humanizadas, raramente se tornam figuras literárias: antes, manifestam-se como fundadores de religiões, conquistadores, políticos, santos, destruidores do mundo. Johann Wolfgang von Goethe foi talvez a única potestade natural a escolher a carreira de poeta, pela qual revelou ser ele próprio a alma da poesia, quiçá do mundo!... Parece uma apreciação exagerada, mas não é.
A extraordinária personalidade de Goethe (excepcionalmente bem documentada) é uma espécie de milagre, nada fácil de ser descrito. Emerson, com a perspicácia de sempre, definiu Goethe como a idéia “de que o homem existe para a cultura; não para o que pode realizar, mas para o que pode através dele ser realizado”. Com efeito, no reinado da contracultura, Goethe é hoje a cultura ocidental obscurecida pela rede mundial de computadores, pela mídia, pela culpa equivocada, pelo semi-analfabetismo, pela linguagem empobrecida e, sobremaneira, pela incapacidade de uma leitura intensa. Considero este fato desolador, no início deste terceiro milênio, pois Goethe seria, para nós, mais saudável do que nunca, agora que a sensibilidade agoniza e a opinião contrária à idéia de gênio alcança a força de uma ideologia daninha.
Fausto, sua obra-prima, mesmo em tradução, ainda é leitura essencial, se pretendemos alcançar um entendimento definitivo com relação à nossa própria cultura, mesmo enquanto sucumbimos. Somos cercados de mulheres e homens faustianos em sua necessidade de desafiar e transgredir, e até o nosso atrevimento tecnológico tem um elemento faustiano. Em Fausto ouvimos a ironia da própria natureza falando através de um indivíduo. E infinitamente metafórico, tanto quanto a natureza, Goethe é a própria alma do mundo, permanecendo um ou dois passos à frente da nossa compreensão.
Deveras, não há outro como Goethe. Até hoje é a glória do idioma alemão e da poesia ocidental. A sobre-humana criatividade que possuía fez com que sempre estivesse só, ao vento e as intempéries do tempo. Tanto poder quase sempre implica em solidão. Não obstante, viu e compreendeu todas as coisas, e a despeito de ser solitário, era sereníssimo. Isso, de certo, explica a demora na iniciação sexual, ocorrida durante uma viagem à Itália, aos trinta e tantos anos, e, mais tarde, com Christina Volpius, ao retornar a Weimar. Até então o que se poderia chamar de carreira erótica de Goethe caracteriza-se por relacionamentos intensos que evitavam qualquer consumação, dos quais o mais duradouro e destrutivo foi uma paixão fraternal e idealizada pela virtuosa Charlotte von Stein, judia convertida à igreja luterana.
Apesar disso, sua poesia não carece de Eros. Aos 81 anos, compôs os trechos mais arrebatadores do Segundo Fausto (meu predileto), somando uma ousadia à outra, em uma obra que qualifico como o mais sublime filme de terror já concebido - ainda que um magnífico poema.
Ler Goethe é, para mim, algo de um fascínio interminável, mas os romances Wilhelm Meister, Egmont e Os Sofrimentos do Jovem Werther são hoje peças de museu, datados a não poder mais. Fausto, especialmente a esplêndida segunda parte, é fantasia grotesca, um pesadelo erótico que, insisto, deve ser lido por todos capazes de suportar tal experiência. Mas não se trata de haver algo errado com Goethe (O Escrito, conforme Emerson o chamava) – existe algo muito errado conosco. Não perdemos apenas sabedoria, mas as qualidades de espírito que constituem requisitos mínimos para uma leitura prazerosa de Goethe.

Mas disso ele já sabia.

Um comentário:

Anônimo disse...

Atenuarei minha ignorância,
Calando um silêncio eloquente,
Ele dirá (o) que não sei
mostrará (o) que não vi
falará por mim que sou mudo e não vejo
Verá por mim que não falo porque sou cego
E me perdoará a inércia de nunca ter lido um Goethe.