sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Senhor dos Labirintos e Espelhos


Certa vez, comentando algumas críticas, Jorge Luis Borges declarou que não se considerava, de fato, um escritor moderno, pois havia nascido no dia 24 de agosto de 1899. Ironias a parte, é realmente difícil situá-lo, visto que não parece moderno, mas tampouco antigo. Digamos então que é, em si mesmo, uma atualidade, apesar de atemporal. Não obstante, a modernidade é o que menos importa em seu estilo, basta que seja o que é: indiscutivelmente original.
Embora tenha iniciado sua carreira literária na infância (quando traduziu o “Príncipe Feliz” de Oscar Wilde, aos seis anos de idade), e tenha contribuído muitíssimo para a renovação da literatura Argentina, Borges só veio obter notoriedade aos 62 anos, quando já estava cego e foi traduzido para o francês. Curiosamente, mesmo na qualidade de mestre da língua espanhola, ele aparentava sentir-se mais à vontade em outros idiomas. Como o poeta Fernando Pessoa, Borges cresceu falando em inglês e, segundo consta, leu Cervantes em língua inglesa antes de ler no original. Mas, também a exemplo de Pessoa, ele sabia que sua pátria literária era outra, era o espanhol. E foi neste vernáculo que escreveu toda a sua obra.
A fama que veio repentina e tardiamente, foi um advento memorável, todavia mais para os leitores do que mesmo para ele. De súbito, o mundo viu surgir algo até então inédito na prosa ocidental, mais precisamente no conto. Se antes desse advento as estruturas do conto haviam sido definitivamente estabelecidas por Tchekov e Maupassant, Borges insinuou-se entre os dois como uma terceira via, originalíssima, que conduzia a novas possibilidades narrativas - todavia difícil de percorrer e até mesmo de ler. Toda a sua genialidade se fundamenta em seus contos (ou Ficções), os melhores dos quais, de modo geral, não excedem 12 ou 15 páginas!... Isso já o qualifica como o maior contista do século XX. E conquanto seja poeta de qualidade considerável, é só como contista que se destaca e inspira reverência. O que não é pouco.
Dominando todos os gêneros, sabendo imitar o sotaque de todas as línguas e épocas, Borges utiliza seu poder de síntese para baralhar a realidade com a ficção em textos impecavelmente insidiosos, ante os quais fica difícil não hesitar entre o crer e o não crer. Borges é um mistificador perigoso, que leva a intertextualidade as última conseqüências, e quase sempre consegue nos enganar. Escreve críticas sobre obras que nunca foram escritas. Cita, em notas eruditas, uma profusão de livros de todos os tempos e de todas as literaturas, metade reais, metade imaginárias, inventadas. E também gosta de citar, de livros que realmente existem, páginas que não constam deles. Define, ele próprio, sua arte literária como sendo de “anacronismos deliberados e atribuições errôneas”.
Esses truques de mistificação estão a serviço de sátiras aparentemente jocosas, mas realmente sérias, que estabelecem os limites do evasionismo. Com feito, Borges não é evasionista. Seu mundo fantástico é, contra todas as aparências, igual ao nosso. Só que visto através de espelhos, ou melhor, de um labirinto de espelhos – duas coisas bastante recorrentes em toda a sua obra. Que já o leu sabe que é com labirintos, espelhos e pedaços da realidade, que Borges faz uma paródia fantástica de nosso mundo, um mundo que por si só já é bastante incompreensível e fantástico.
A única coisa que faz falta nessas paródias é o amor, Eros. Mas essa ausência é facilmente justificada se levarmos em conta que a vida afetiva e sexual de Borges foi praticamente inexistente. Ele viveu sempre como um solteirão, só casando-se na velhice, e, segundo a viúva, nem sequer consumou o ato. A única companheira de toda a vida foi a mãe, que trabalhou e morreu como sua secretária particular até os 99 anos. Essa ausência de eros, porém, não diminiu o seu brilho, pelo contrário, dá até um certo glamour trágico se aliado a cegueira!... Pode-se até criar uma legenda: Borges desposou a literatura e leu até ficar cego!...
Borges começou a perder a visão muito cedo, no começo da década de trinta. E quinze anos depois, quando foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, já não enxergava mais. Não obstante, ainda era capaz de criar e ditar poesia. E uma delas foi o Elogio das Sombras, na qual cantou o destino do leitor cego a quem um dia concederam um reino de livros.
Através desse poemas percebemos que ele nunca se deixou abater, e tampouco abandonou a literatura.
Mesmo perdido num escuro labirinto de espelhos e livros, Borges pôde demonstrar justamente o que é o homem: o sujeito e objeto de sua própria busca.

Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei deveras do seu artigo. Fiquei com a impressão de que Borges, apesar de cego, não era um "cego escritor" pois via muito e além dos que os olhos podem ver.
Devo dizer que estou ainda mais curioso em relação a sua obra.

Emerson Coelho