domingo, 27 de maio de 2007

O Poeta

Quando a Europa ainda convalescia do longo pesadelo da queda do império romano e das invasões bárbaras, e quando a Igreja ainda servia-lhe como enfermeira, algumas cidades foram surgindo como centros de uma nova ordem mundial. Da França a Pérsia, de Pequim a Lisboa, o comércio restaurado deu alento à cultura ocidental que renascia através de arte e literatura. Em Naishapur, o poeta matemático, Omar Kayhyan, compõe o seu Rubayat de desiludida alegria; em Paris, o poeta-ladrão François Villon, entre um assalto e outro, compõe gestas maravilhosas; e em Florença, Dante, o Poeta, encontra Beatriz e nunca mais volta a ser o mesmo.
Vamos imaginar Dante, aos 9 anos, num dia 27 de maio como este, em sua festa de aniversário, procurando esconder-se de todos, com vergonha de cada parte do seu corpo e de cada par de olhos do recinto. É então que, de súbito, Beatrice Portinari surge-lhe à frente - uma menina de 8 anos, e imediatamente nasce no coração do menino o amor - um amor que a carne não fala - pura afeição. "Naquele instante o espírito da vida, que se esconde no mais íntimo recesso do coração, começou a vibrar com tal violência que se revelava em minhas pulsações; e trêmulo, eu me pronunciei estas palavras: - Esse deus mais forte que eu virá governar-me!..." Assim escreveu Dante anos mais tarde num relato idealizado, porque nada na memória tem a suavidade do primeiro amor.
Entretanto, Beatriz deu-se a outro, e faleceu aos 24 anos, de modo que foi possível a Dante amá-la até o fim, sem que o tempo roubasse-lhe a beleza e a satisfação do desejo embotasse-lhe a fantasia.
De resto, entregou-se à política, foi derrotado e exilado, com todos os bens confiscados. Por protestar e demonstar revolta, condenaram-no a ser queimado vivo - caso fosse apanhado. Dante não se deixou apanhar, mas espiritualmente sofreu a pena da fogueira: pôde mais tarde descrever o inferno porque na terra passou por todos os círculos infernais; e se menos vivamente pintou o paraíso foi por falta de experiência pessoal. Vagou de cidade em cidade, perseguido e sem amigos, muitas vezes passando fome.
É possível que a Divina Comédia que começara a escrever o salvasse do suicídio ou da loucura, pois nada dignifica tanto a alma de um homem como a criação da beleza e a busca da verdade. E como disse Nietzsche, a vida é insuportável para quem não a encara como um espetáculo estético; olhá-la como motivo para um quadro ou canção é atitude que afasta os espinhos. Por isso, Dante começou a escrever; contou com magoada alegria como tinha vivido no inferno, como se purificara no purgatório do sofrimento e como afinal se alçára a um céu de felicidade conduzido pelas mãos da sabedoria e do amor. Não seria coisa medieval se não fosse alegórica: nossa vida na terra é sempre um inferno até que a sabedoria (Virgílio) nos purgue e o amor (Beatriz) nos erga à felicidade e à paz.
Dante, todavia, nunca conheceu a paz; permaneceu até o fim torvo de aspecto e alma - como Giotto o pintou. Dizem os seus contemporâneos que jamais sorriu, e dele falavam com pavor como de um homem verdadeiramente egresso do inferno. Alquebrado e gasto, prematuramente velho, ele morreu em Ravena em 1321, aos 56 anos. Tempos depois, Florença implorou pelas cinzas do que em vida tanto se esforçou por queimar na fogueira. Mas Ravena negou, e o túmulo de Dante ainda está lá como um dos seus grandes monumentos. Quinhentos anos depois, outro exilado, Byron se ajoelhava diante dele - e compreendia.

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